(1998)

O trabalho é a coisa mais natural do mundo para o homem socializado no Ocidente; tão natural que, de modo geral, nenhum pensamento é desperdiçando para refletir sobre o que é realmente o trabalho. Se lhe perguntarmos, responderá, em linhas gerais, que o trabalho é apenas a atividade dirigida a um fim, desenvolvida com esforço físico ou mental e, como tal, uma eterna necessidade humana. Talvez se chegue ao ponto de ver no trabalho a essência do homem, ou seja, aquilo que nos diferencia dos animais e nos distancia da natureza. Um texto chamado “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”, como o de Friedrich Engels, do final do século XIX, poderia soar hoje um tanto patético, mas resume o estado de consciência ainda dominante. Sintomaticamente, ele figura precisamente nos círculos de “esquerda” da União dos Sindicatos Alemães (DGB) entre os textos mais valiosos do marxismo.

      Seria na verdade um absurdo negar que, para a conservação e organização satisfatória das condições de vida, é preciso produzir coisas úteis e realizar atividades as mais diversas. Se as pessoas quiserem comer, terão de produzir cereais, legumes e frutos, criar animais; elas têm de cozinhar e, uma vez cultivados os campos, têm de construir e equipar estábulos, celeiros e cozinhas; devem aprender como tudo isto se faz; têm de se pôr de acordo sobre quem e quando se faz o quê, como as coisas produzidas serão partilhadas e assim por diante. Nada disso será fundamentalmente modificado, mesmo que o conhecimento e a técnica permitam reduzir o tempo necessário para tal. Mas, afinal, por que a sociedade burguesa de fato inclui atividades completamente diferentes em uma única abstração – o “trabalho”? 

     À primeira vista pode parecer que se trata de uma abstração que serve apenas para captar conceitualmente a realidade e facilitar sua compreensão, tal como podemos dizer “árvore” quando pensamos na faia, no carvalho ou na bétula. Aqui, no entanto, há uma diferença substancial. A abstração “trabalho” refere-se não ao conteúdo das atividades designadas, mas somente à forma social na qual elas se realizam. O que se considera “trabalho” não é definido por critérios materiais, como a questão sobre que tipo de manuseio é efetuado ou que produtos são produzidos ou quais utilidades concretas eles têm para as pessoas. Decisivo é apenas se uma atividade se enquadra diretamente no contexto social abstrato da produção de mercadorias: e o critério para decidi-lo consiste em saber se essa atividade é feita em troca de dinheiro. Por isso, conforme o contexto, uma determinada atividade pode umas vezes ser considerada trabalho e outras vezes não. Por exemplo, ninguém negará a diferença entre alguém que decora e pinta a sala da sua própria casa e quem desempenha essa mesma atividade como empregado em uma empresa de pinturas. Em ambos os casos, o conteúdo é idêntico, só que no primeiro caso se trata de satisfazer uma necessidade sensível bem determinada (a de ter uma sala mais bonita) e no segundo caso, pelo contrário, trata-se da submissão a uma coerção completamente sem sentido: a coerção social totalitária de ganhar dinheiro. Diante dessa coerção, todas as atividades são iguais, seja qual for o seu conteúdo. Conta apenas a respectiva comercialização. Só dessa maneira elas se transformam em “trabalho”.

     Nas chamadas trevas da Idade Média ninguém se lembraria da ideia absurda de subsumir a atividade de um ferreiro, de uma camponesa, de um cavaleiro e de uma freira em uma única categoria geral e abstrata. Isso só faz sentido em uma sociedade na qual os seres humanos são forçados a vender sua energia vital como “força de trabalho” para um fim que lhes é indiferente e estranho: o cego fim em si mesmo da acumulação de capital. No marxismo, o trabalho sempre figurou como antítese do capital. Também o é, mas apenas como representante de um polo de interesse no interior do sistema geral de referência da produção capitalista de mercadorias. Se o “trabalho” é a forma de atividade na qual os homens precisam vender a sua energia vital para sobreviver, então o conteúdo concreto da sua atividade, em última análise, deve ser-lhes tão indiferente como o é para o capitalista que os contrata. Quer se trate de produzir pesticidas ou de criar autoestradas, de afastar mendigos das calçadas ou de fazer novelas, é o seu “trabalho” que “tem de ser feito”. Claro que isso não exclui preferências pessoais e escrúpulos éticos. O mesmo, no entanto, se aplica também aos capitalistas. Haverá sempre alguém que se recusa a produzir armas, mas sempre se pode encontrar em bom número aqueles que o farão de boa vontade a fim de ganhar dinheiro. A tão citada liberdade de escolha sempre se refere apenas a opções no interior do já pressuposto sistema fetichista do trabalho e do capital.

     Que nos dias atuais a maior parte das pessoas não seja mais consciente do caráter coercitivo do trabalho isso só demonstra até que ponto ele foi internalizado. Mas jamais esqueçamos que, também na Europa, foram necessários séculos de violência aberta ou mesmo uma verdadeira guerra contra a maioria da população, até que as pessoas estivessem prontas para entregar regularmente a sua energia vital em fábricas e manufaturas. O mesmo processo sangrento repete-se, em seguida, com algum atraso, nas colônias e nos países retardatários da modernização do mercado mundial – sem, no entanto, que fosse alcançado um grau de internalização tão profundo como na Europa Central. Aqui o trabalho tornou-se de tal maneira uma segunda natureza do homem que é impossível imaginar outra forma social de produção de riqueza. Um indício terrível disso é que desde então quase todas as atividades (mesmo aquelas que não contribuem diretamente para a produção de mercadorias) são percebidas de modo auto-evidente como trabalho. Até a discussão íntima se torna “trabalho de relação” e mesmo quando dormimos realizamos um “trabalho do sonho”. Não se trata apenas de desvios de linguagem e sim de indicações de quão profundamente a estrutura social dominante penetra no psiquismo dos indivíduos. É por isso que, mesmo com a crise da sociedade do trabalho, os sujeitos moldados pelo capitalismo talvez constituam o maior obstáculo à superação do sistema fetichista dominante. Não querem deixar de trabalhar, mesmo quando há muito se tornou evidente que a acumulação de capital alcançou seus limites absolutos. O elemento de loucura nessa crise fundamental é que ela não radica na carência material, mas, pelo contrário, na produtividade imensamente avançada. Em outras condições sociais, isto poderia servir para fornecer a todos os seres humanos os meios materiais suficientes e, além disso, permitir um imenso fundo de tempo para o ócio e todo tipo de atividades lúdico-criativas. Sob o sistema coercitivo de produção de mercadorias e do trabalho abstrato, no entanto, o estado já atingido pelas forças produtivas conduz inevitavelmente à expulsão de um número crescente de pessoas do acesso aos meios elementares de existência. Em tais condições, todas as boas intenções de “redistribuição” estão, em última análise, condenadas ao fracasso, pois o critério para a participação no dispêndio social permanece o do dispêndio de trabalho. E o mesmo se passa com as ideias de “rendimento básico” ou da “renda cidadã”, uma vez que elas pressupõem a extração do valor no processo de utilização empresarial da força de trabalho viva na produção mercantil. Se esse processo não for parado (o que seria o fim de todas essas fabulações), a redistribuição monetária, na prática, pode ser apenas uma distribuição de esmolas abaixo do nível da proteção social. E mesmo a redução ou flexibilização do tempo de trabalho (seja qual for a versão) pode, quando muito, reintegrar provisoriamente uma pequena parte daqueles que caíram fora do sistema de trabalho – isto, em geral, graças a salários consideravelmente deteriorados.  

     Tudo isto se deve a uma contradição fundamental e insolúvel imanente à moderna produção de mercadorias que consiste, por um lado, na dependência em relação à massa de trabalho colocada em movimento, uma vez que esse é o único jeito de se cumprir o absurdo “sentido” insensível da acumulação de capital. Isso porque o capital não é outra coisa senão a representação fetichista do trabalho passado ou do “trabalho morto” (Marx), do trabalho dispendido no processo de valorização empresarial. Por outro lado, a concorrência do mercado obriga a uma contínua elevação do nível de produtividade das empresas, o que dispensa a necessidade de força de trabalho, minando permanentemente a base econômica da sua própria existência. Até os anos setenta o capitalismo conseguiu mitigar essa contradição fundamental por meio da expansão territorial e da abertura de novos setores e ramos industriais intensivos em trabalho (por exemplo, a produção de automóveis). Com o fim do fordismo, porém, essa estratégia de adiamento chegou ao limite; o potencial de produtividade da microeletrônica e das tecnologias da informação provocaram um derretimento maciço do trabalho nos setores chave da valorização, para os quais não fornecem nada nem próximo de uma compensação. Olhando mais de perto, os alegadamente novos setores promissores de “ocupação”, especialmente no assim chamado setor de serviços, mostram-se rapidamente como produtos da imaginação.

     Mesmo que nesse setor tenha realmente ocorrido uma expansão e não apenas uma ilusão provocada por truques estatísticos, isso não leva de maneira alguma à solução, ainda que temporária, do dilema capitalista. Em primeiro lugar, os “êxitos do emprego” baseiam-se, em parte diretamente, em parte indiretamente, na enorme inflação dos setores do crédito e da especulação, que há muito se tornaram os principais motores da economia mundial. Contrariamente à crença popular, o êxodo de capitais para essa esfera não é um obstáculo aos investimentos produtivos, mas oferece sobretudo uma alternativa conveniente para o dinheiro que não pode mais ser investido de modo “rentável” na economia real. A crise estrutural da valorização não é solucionada desse modo, mas apenas adiada por algum tempo. Quanto maior for o adiamento, mais a especulação ganha uma existência autônoma e maior será o golpe sobre a acumulação real, o sistema social e as finanças do Estado (os acontecimentos do Sudeste Asiático são apenas uma pequena amostra). 

     Enquanto o jogo funcionar, os refluxos permitem ainda manter e criar “postos de trabalho” que de outra forma jamais poderiam ser financiados. Isto se aplica não apenas ao setor estatal que, para o bem e para o mal, depende do crédito, mas igualmente e de modo crescente a uma grande parte do “emprego” capitalista privado; os lucros especulativos são também, em parte, gastos na compra de bens de consumo, construções e serviços e, com isso, colocam o trabalho em movimento. Sobretudo nos Estados Unidos, onde muitos pequenos investidores aplicam seu patrimônio em ações, os ganhos na bolsa nos últimos anos têm sido um motor decisivo para o consumo. E se, em 1999, o orçamento dos Estados Unidos, pela primeira vez em trinta anos, teve um pequeno excedente, é, sobretudo, devido aos ganhos especulativos. Tal com previu Lawrence Lindsey, do banco central norte-americano, a administração Clinton programou um total de 225 bilhões de dólares em receitas adicionais até 2002 (ver Wirtschaftswoche 13.11.97). Lindsey fala ironicamente de um “Maná caído do céu”; em todo o caso, um céu bastante profano, que muito em breve pode desmoronar.

     Em segundo lugar, os novos “postos de trabalho”, especialmente no setor terciário, só são competitivos por causa dos salários extremamente baixos, dos níveis de proteção social e direitos trabalhistas em grande parte ou totalmente desmontados e da ausência de impostos ou encargos. A produtividade econômica insuficiente é, de tal modo, compensada superficialmente (e de modo apenas parcial) no nível monetário pela exploração extrema da força de trabalho e por meio da transferência de custos para o Estado. Isso, no entanto, não resolve a contradição de base da crise. Do ponto de vista da valorização do capital, não importa apenas que a força de trabalho seja utilizada, mas se ela representa valor (e quanto ela representa). O critério aqui é o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de um determinado produto no nível dado pelas forças produtivas. Por isso, a referência do valor é determinada pelos setores produtivos centrais da produção no mercado mundial. O próprio setor dos baixos salários não escapa, permanecendo submetido a essa concorrência.

     De tal modo, quinhentas horas de trabalho de uma costureira de fundo de quintal podem produzir uma quantidade menor de peças e, portanto, representar menos valor do que uma única hora de trabalho de um robô têxtil equipado com laser. O mesmo se aplica ao amplo setor dos serviços comerciais que em si mesmos não “produzem” valor e ainda assim são sistemicamente indispensáveis, pois as mercadorias precisam ser vendidas. O conjunto dos pequenos comércios e do comércio ambulante que, especialmente nos países do Terceiro Mundo, constitui uma grande parte do setor informal, deve ser medido, em última análise, pelo setor racionalizado das cadeias de supermercados, que movimentam muito mais mercadorias com uma parte reduzida de funcionários. Na discussão teórica sobre o desenvolvimento, nos anos 1970, esse fenômeno era conhecido como “desemprego oculto”, porque, do ponto de vista econômico, era gasto aqui um tempo de trabalho supérfluo. Ele foi visto como um fenômeno de transição nos países do Terceiro Mundo que, desapareceria no decurso da modernização capitalista (nesse meio tempo fracassada). No cinismo do discurso neoliberal, pelo contrário, faz a melhor impressão que agora também nas metrópoles ocidentais as pessoas sejam cada vez mais obrigadas a vender a sua força de trabalho de forma subprodutiva em termos capitalistas e, portanto, em condições miseráveis. O decisivo é que trabalhem.

     Ainda que esse terrorismo do trabalho, no final das contas, não funcione economicamente, é hoje uma estratégia terrivelmente eficaz de gestão da crise. Tal como no início da produção capitalista de mercadorias, a coerção do trabalho é novamente propagada e aplicada, só que não mais para impor a disciplina da fábrica ou recrutar as pessoas para o “exército do trabalho” e sim como meio de disciplinamento para uma população realmente supérflua do ponto de vista da valorização. Enquanto as casas de trabalho modernas serviam para instalar uma nova forma de reprodução social contra a resistência de grande parte da população, a atual coação do trabalho, propagandeada em igual medida por neoliberais, socialdemocratas e radicais de direita, não tem outro propósito senão a preservação desta forma historicamente há muito ultrapassada. O pior de tudo é que isso serve aparentemente a uma necessidade de massa profundamente enraizada. Onde ocorrem protestos as pessoas não estão contra, mas a favor do trabalho – isso enquanto a raiva não se manifesta também em projeções racistas, antissemitas e de darwinismo social. Enquanto a crise avança inexoravelmente, as pessoas se agarram sem hesitar à ilusão masoquista de que têm de vender a sua energia vital em condições cada vez mais miseráveis. Caso não seja possível romper com essa fixação fatal e criar uma consciência de que os potenciais de produção de riqueza historicamente criados devem ser libertados das formas fetichistas do capital e trabalho, a crise da sociedade do trabalho destruirá completamente os fundamentos sociais e naturais da vida.

Publicado com o título “Terrorismus der Arbeit” na revista Juridikum 2/98, Viena, 1998.

Tradução: Marcos Barreira

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