(2015)

O livro de Wolfgang Streeck, Tempo comprado, é apenas mais uma contribuição à análise reduzida do capitalismo – em particular, sua celebração da unidade estatal como suposto bastião da democracia.

O livro Tempo comprado, de Wolfgang Streeck, que circula há quase dois anos, é considerado por muitos uma contribuição fundamental para a discussão sobre a crise econômica atual. Jürgen Habermas, o Nestor da filosofia e da sociologia alemãs, chega mesmo a comparar Streeck com Karl Marx. É verdade que o próprio Streeck se encontra dentro da tradição teórica marxista e está “convencido de que o desenvolvimento atual das sociedades modernas não pode ser compreendido sem o uso de certos conceitos-chave que remontam a Marx – e este sempre será o caso” (p. 18). Diferente de Marx, a crise atual em suas formas aparentes e estágios transitórios é considerada por Streeck não como um problema estrutural da forma de socialização capitalista, mas apenas como uma crise de legitimação. De fato, a análise de Streeck se baseia exclusivamente no conceito marxiano de classe, enquanto a lei de Marx da queda tendencial da taxa de lucro (de acordo com Marx, a lei mais importante da economia política) é tão pouco referida quanto os demais elementos teóricos relativos ao problema lógico imanente da economia capitalista. Com sua redução à luta de classes, Streeck se coloca ao lado do Marx exotérico, relativamente ao “duplo Marx” (Robert Kurz). Essa mudança da análise da crise para o plano das relações de classe ou da legitimação tem consequências para a concepção da emancipação. Ignorando o caráter fundamental da crise atual, Streeck pode manter o sonho reformista de domesticação do capitalismo.

Apenas uma crise de legitimação?

Como ponto de partida histórico de sua investigação, Streeck escolheu o final da guerra em 1945. Nesse momento, de acordo com sua concepção, a “classe que depende dos lucros” – ou seja, os proprietários ou gerentes do capital – deveria aceitar uma ampla gama de condições para apresentar a forma social capitalista surgida da guerra como a melhor alternativa diante das condições de concorrência sistêmica com o bloco socialista oriental. Isso levou a um “casamento forçado entre capitalismo e democracia” (p. 27), que foi acompanhado por intervenções políticas constantes no dia a dia dos negócios capitalistas. Daí resultou a expansão do Estado do bem-estar social e da prestação de serviços públicos, sobretudo à custa do capital. Esse arranjo proporcionou ao capitalismo do Ocidente uma ampla legitimação junto à população e fez com que ele aparecesse como a melhor alternativa frente ao socialismo de estado do Leste.

     Isso funcionou bem até a década de 1970. A partir de então, Streeck descreve uma profunda crise de legitimação, mas não por parte das massas, que haviam se acomodado ao trabalho assalariado no interior da sociedade de consumo e do Estado de bem-estar, mas do lado do capital. Desde aqueles anos, este começou lentamente, mas com firmeza, a escapar da regulação estatal. Isso, por sua vez, teria desencadeado a crise permanente, que continua até hoje, apesar de constantes mudanças de aparência. Em sua análise, Streeck sustenta um conceito extremamente simplificado de crise. Para ele, ausência de crise econômica significa simplesmente acomodação, ao passo que as crises econômicas resultam de crises de confiança do lado do capital. Crises econômicas “não são perturbações técnicas, mas sim um tipo particular de crise de legitimação” (S. 49, ênfase no original).

     Os capitalistas primeiro solucionaram a crise recusando a expansão necessária do investimento de capital que permitia o pleno emprego. Em seguida, deram início à crise, se apoderando de partes cada vez maiores da produção, quer dizer, convertendo-as em mais-valia. Isso lhes deu a cobiçada maior fatia do bolo, mas ao mesmo tempo provocou uma crise de vendas, já que a parte retida do valor fazia falta no poder de compra. Os Estados reagiram com uma sucessão de intervenções para compensar o subemprego e, em seguida, a queda do poder de compra. No entanto, elas não podiam coloca rum fim na crise, conseguindo apenas uma estabilização temporária que reiteradamente conduzia à mudança das formas de manifestação da crise. A sequência histórica dos fenômenos de crise consistiu na sequencia: inflação – endividamento estatal – inchaço do setor financeiro (especialmente os bancos) – renovação da dívida estatal para resgatar o setor financeiro – valores de balanço dilatados nos bancos centrais para financiar os Estados. Ao mesmo tempo, a reação a cada novo surto de crise resultou a cada vez no aumento da oferta monetária. Isso provocou um adiamento, até o dinheiro ser finalmente utilizado – é a essa circunstância que se refere o título do livro.

       Em particular, isso pode ser visto do seguinte modo: a) inicialmente, os Estados democráticos tentaram corrigir o rumo do desenvolvimento com o meio keynesiano clássico da política monetária inflacionária. Isso funcionou bem durante algum tempo, pois desarmou o conflito distributivo entre capital e trabalho e assegurou em primeiro lugar o pleno emprego. Por um momento, havia dinheiro suficiente para todos, mas sempre perdendo valor. Isso durou até o dinheiro finalmente se esgotar – como indica o título do livro. No entanto, esse meio se esgotou o mais tardar com o começo da estagflação – uma desaceleração do crescimento apesar da inflação – na segunda metade dos anos 1970. O dinheiro perdeu muito valor, distorcendo as perspectivas de lucro e tornando os investimentos pouco atrativos; b) o passo seguinte foi o endividamento dos Estados. Isso permitiu obter dinheiro que teoricamente poderia ser pago por meio do crescimento econômico e de um futuro acréscimo dos impostos. Mas a conjuntura não atingiu os níveis esperados e as receitas fiscais esperadas não aconteceram. Finalmente, os Estados foram obrigados a consolidar suas finanças colocando fim à política de gastos públicos; c) logo se seguiu uma perigosa diminuição da demanda. A resposta a este problema foi a liberalização dos mercados de capitais, que permitiu um aumento acelerado do endividamento privado. Agora, cabia aos consumidores fechar a falta de demanda com créditos tomados por eles mesmos. Deveriam pagá-los com salários que eles só receberiam no futuro. Ainda que os alemães não tenham aderido o suficientemente, isso foi mais do que compensado por outros países, especialmente pelo consumismo norte-americano e a correspondente exportação para lá. Isso foi possível graças à globalização e aos processos de desregulação e de privatização a ela associados. A substituição da dívida pública pela dívida privada também foi respaldada ideologicamente por uma teoria dos mercados de capitais, segundo a qual estes não exigiriam regulação estatal. Esta estratégia funcionou bem até que a crise do subprime fez com que inúmeros mutuários privados jamais pagassem suas dívidas. Uma quantidade enorme de créditos podres ameaçou quebrar o sistema bancário internacional no ano de crise de 2008; d) Isso obrigou os Estados, que estavam a ponto de se despedir da responsabilidade pela economia, a voltar ao jogo. Eles tiveram que comprar os bancos para tira-los da miséria nos respectivos territórios e, deste modo, endividaram-se mais do que nunca. Então a crise da dívida estatal retornou; e) no final, os bancos centrais tiveram que intervir e ajudar os Estados com notas bancárias ou comprando títulos públicos. Mais uma vez, a oferta monetária aumentou dramaticamente. No entanto, ainda estava nos mercados de valores imobiliários e só ali provocou o aumento dos preços. No entanto, em longo prazo, a ameaça de dinheiro para todos os mercados de bens, aumentando drasticamente os preços lá, faria retornar a inflação.

      Como se pode ver, desde os anos 1970, quando o dinheiro foi usado para comprar dinheiro uma e outra vez, todas as estratégias de compras esgotaram-se após algum tempo. No que diz respeito ao adiamento da crise por meio do dinheiro sem cobertura, existem aqui algumas semelhanças com a análise da crise da crítica do valor. Alguns leitores poderiam facilmente ter a impressão, ao ler superficialmente, que Streeck teria se baseado em críticos de valor como Robert Kurz, Ernst Lohoff ou Norbert Trenkle (para citar apenas os mais importantes) sem citá-los devidamente. No entanto, uma leitura mais atenta rapidamente alivia Streeck dessa acusação no que diz respeito às causas da crise, ou seja, surgem diferenças que dificilmente poderiam ser maiores. Enquanto que para os críticos do valor a causa real da crise reside numa galopante perda da massa de valor, que resulta de uma produtividade crescente e representa um problema lógico incontornável da sociedade da valorização (isto é, do capitalismo), que não pode ser superado no interior da forma de socialização capitalista, Streeck, em oposição, atribui a causa da crise simplesmente à fração demasiado elevada da mais-valia apropriada pelos capitalistas. Esta abordagem não é exclusiva de Streeck, mas está generalizada no mainstream da teoria da crise de esquerda. Esta pode muito bem ser a razão pela qual essa tentativa de explicação questionável dificilmente é discutida e nem parece ser um problema para a maioria dos leitores.

Fim da democracia?

O enfoque da explicação, no entanto, tem consequências para a formação da teoria complementar de Streeck. No decorrer da argumentação, Streeck estabelece um conflito entre o capitalismo e a democracia, que ele considera o problema real a ser abordado. A análise continua com a apresentação de uma série de transformações do Estado. Inicialmente financiado como um “estado fiscal” pela cobrança de impostos, no decurso da década de 1980, ele se transformou em um “estado da dívida”, cada vez mais dependente do empréstimo e, finalmente, se coloca como um “Estado de consolidação”, impondo ele mesmo um freio da dívida, com o suposto propósito de reduzir ainda mais os gastos do governo.

     Em cada mudança, cresce o poder dos credores, que têm uma influência crescente na política estatal para garantir suas reivindicações e afastar o “cidadão” (Staatsvolk). Quanto maior a sua dívida, mais um país está exposto às decisões dos mercados financeiros, o que, entre outras coisas, leva a que as medidas de consolidação sejam aplicadas, se necessário, contra a população. Essa tendência é acompanhada pela delegação de direitos de soberania estatais a instituições e tratados internacionais. Por exemplo, a União Européia está exigindo mercados de trabalho flexíveis entre os países membros, que em regra são acompanhados por políticas salariais restritivas e pelo desmantelamento dos direitos dos trabalhadores. O mesmo se aplica aos tratados internacionais – basta pensar no TTIP. Ambos conduzem, conforme a visão de Streeck, à imunização progressiva do capital contra intervenções democráticas. Para Streeck, o Estado-nação é o único lugar onde é possível um processo decisório democrático; só aqui podem coincidir as reivindicações do capital e as da população. Como ele ignora completamente o lado do “duplo Marx” que leva a uma superação desta forma de socialização, permanece em Streeck apenas a perspectiva de uma limitação do capital, para proteger tanto ele mesmo quanto a sociedade ao seu redor das consequências destrutivas da valorização capitalista desenfreada. Para Streeck, a única instituição que pode realizar tal contenção é o respectivo Estado-nação. Habermas assinalou em sua crítica do direito a postura nacionalista de esquerda como uma “opção nostálgica”, mas  ele mesmo se refugiou na ilusão de uma Europa social para a qual não há nenhum sinal.

A ilusão do capitalismo domesticado

Deve ser mencionado que Streeck, na época como conselheiro do chanceler federal Gerhard Schröder (SPD), esteve envolvido na preparação das reformas Hartz. Por democracia, obviamente, ele entende a república de “labutadores honestos”, enquanto aqueles que veem o problema na própria sociedade do trabalho deveriam, se necessário, ser obrigados à “felicidade” no âmbito do Estado de bem-estar. Isso só é possível para Streeck no âmbito do próprio Estado, que deveria desenvolver todo seu poder de ação por meio da disposição irrestrita sobre o próprio dinheiro e sem interferência de instituições e tratados supraestatais. Ele critica as “velhas teorias da crise” por tratarem o capital como um aparato, não como uma classe. Obviamente, não o incomoda que muitas indicações em Marx apontem os capitalistas como “máscaras de caráter econômico (…) meras personificações das condições econômicas” (MEW 23, 100). A ignorância de Streeck em relação ao momento estrutural expressado nas ações da “classe capitalista”, no entanto, o leva diretamente a uma análise muitíssimo reduzida do capitalismo. Por isso, não em último lugar, Streeck ignora o fato de que, ante um desenvolvimento galopante da produtividade, que substitui continuadamente a mão de obra pela maquinaria, não é mais possível colocar todas as pessoas para trabalhar. Independentemente de esse retorno ao pleno emprego fazer sentido ou não em face da superprodução absurda, do desperdício galopante de recursos e dos danos ambientais irreversíveis, sua impossibilidade é o verdadeiro motivo da perda do poder de compra e crise do emprego, não algum tipo de “insatisfação do capital”. Em vez de domesticar o capital – sempre no âmbito do Estado-nação – deve-se colocar na agenda a busca de uma saída da sociedade do trabalho e, portanto, da forma de socialização do capitalismo. Por outro lado, um Marx de tal modo reduzido, como o encontramos em Streeck, representa um nível tão baixo de gordura em relação ao produto original, que não se pode esperar que daí saia ricota.

Peter Samol é colaborador do Grupo Krisis.

Título original: Der Mager-Marx. Publicado em https://www.krisis.org/2015/der-mager-marx/

Tradução: Marcos Barreira, com a colaboração de Javier Blank.