(2000)

Nos países capitalistas avançados, a Itália é muitas vezes vista em segundo plano relativamente aos países do norte da Europa, e geralmente é dessa forma que ela mesma se vê. Esse pode muito bem ser o caso quando se trata dos serviços sociais do Estado ou da sua eficiência, ou seja, do “bem-estar dos cidadãos”, que se supõe o objetivo da unificação europeia. No entanto, quando se trata dos aspectos menos elevados, mas talvez mais centrais, da construção da Europa moderna, a Itália teve muitas vezes até uma função pioneira e sempre foi um laboratório para o desenvolvimento de novas técnicas de dominação: seja a unificação nacional de 1860/61, dez anos antes da Alemanha, pela conquista de um Estado federado, seja a invenção do fascismo, seja o entrelaçamento entre máfia e aparelho estatal, além do uso do terrorismo para impedir protestos em massa que já não podiam ser canalizados pelas vias tradicionais. O desenvolvimento de novos métodos de produção descentralizados, baseados em pequenas empresas flexíveis, também teve início na Itália – no final dos anos 1970 – antes do que em qualquer outro lugar.

     A partir de 1992, a Itália parece estar novamente na vanguarda da transição para uma nova fase, que também começava a aparecer em outros países.

     A série de investigações judiciais conhecida como Mani pulite (mãos limpas) indiciou a maior parte dos que haviam governado até então e derrubou o sistema político que existia desde 1948. Na chamada “Primeira República”, a Democracia Cristã governou com partidos menores do centro político, como parceiros de coalizão, especialmente os socialistas, enquanto o Partido Comunista estava oficialmente na oposição, ainda que tenha se envolvido de fato em todas as decisões importantes, sobretudo durante o “estado de emergência nacional” na época do “terrorismo”, por volta de 1978. Em 1993, a Democracia Cristã se dissolveu em vários partidos, enquanto todos os demais desapareceram ou se renomearam (e, de modo significativo, sempre aboliram o termo “partido”). Com Ciampi, o chefe do banco central externo ao sistema partidário, pela primeira vez uma pessoa que podia ser apresentada em toda parte tornou-se o primeiro-ministro. Não é preciso ser especialmente perspicaz para supor que a tentativa de forçar a saída do palco de uma casta corrupta de políticos que só tentavam se preservar, correspondia não tanto a um súbito impulso do judiciário, nem a um clamor moral da população, mas ao interesse dos chamados “poderes fortes”[1], que não queriam perder o contato com a integração europeia e, portanto, apostaram na modernização das estruturas (enquanto no norte da Itália a pequena e média burguesia organizadas na Lega Nord pensavam que só poderiam dar o salto rumo à Europa por conta própria, sem o resto da Itália). A partir da política, a onda de renovação varreu a sociedade: embora de modo algum houvesse exigências subversivas, o desejo geral de legalidade e a exigência de que as estruturas públicas não deveriam mais servir apenas à auto-reprodução de uma oligarquia pareciam pôr em causa os fundamentos do modelo especificamente italiano, que existe há décadas, em favor de um modelo “mais moderno” ou “mais europeu”. De fato, falou-se até em uma “revolução italiana” pacífica.

     Mas era tudo ilusão. A Itália deve os seus “êxitos” – afinal, ascendeu à quinta ou sexta nação industrial do mundo – precisamente a essa combinação de traços arcaicos e modernos e à grande flexibilidade que resulta deles. Sua transformação em um país onde tudo é feito de acordo com a lei seria tão contraproducente do ponto de vista do sistema quanto a insistência dos “empregados” japoneses sobre o que, em teoria, são os seus direitos. Depois do ano extremamente turbulento de 1993, ocorreu uma mudança radical em 1994 com a entrada de Berlusconi, o czar da mídia, na política. A vitória eleitoral de sua Forza Italia, fundada poucas semanas antes das eleições, a formação de um governo junto com a Lega Nord e a Alleanza nazionale – a primeira vez na história do pós-guerra europeu em que um partido xenófobo originado do fascismo participa do governo – assim como o início de sua atividade governamental, colocaram subitamente o foco da atenção internacional na política interna italiana, que já não interessava a ninguém. Aqui as “democracias ocidentais” pareciam ver o seu próprio futuro[2]: um sistema autoritário velado no qual um magnata da indústria, que aparece como um tipo de amalgama de messias e popstar, sempre tem a opinião pública em suas mãos graças aos próprios canais de televisão e governa por meio de referendos e pesquisas de opinião, desviando-se em grande medida do parlamento e de todas as instituições tradicionais. A Forza Italia não era um partido, mas consistia nos diretores regionais das empresas de Berlusconi; em vez de grupos locais, havia os “Clubes Forza Italia”, e não havia convenções partidárias nem eleições internas. O ultraliberalismo, a tentativa de anistia para os políticos incriminados, a legalização de todas as habitações construídas ilegalmente, o direito de caça nos parques nacionais, a redução das pensões foram suas principais ações. Ao mesmo tempo, houve uma personalização da política, antes desconhecida na Itália, e líderes “carismáticos” e televisivos apareceram não só à direita (Berlusconi, Fini), mas também na “extrema” esquerda, na figura do presidente da Rifondazione comunista, Fausto Bertinotti. Aqueles que consideravam a democracia burguesa “clássica” uma grande conquista finalmente tiveram novamente um inimigo contra o qual poderiam defendê-la.

     O que resta dela hoje? À primeira vista, não muito. O golpe televisivo de 1994 e a tentativa do governo Berlusconi de derrubar as regras tradicionais da política italiana, baseadas no melhor equilíbrio de pesos, finalmente fracassaram devido à táctica superior de desmoralização por parte dos seus adversários em uma ampla frente. A lei italiana fundamental, “mudar tudo para que nada mude”, virava-se então contra a direita, e a inércia descomunal do sistema político, novamente, parecia ter vencido. Berlusconi tornou-se gradualmente um político normal na sucessão dos democratas cristãos, e um político bastante desajeitado, mantido vivo sobretudo pela esquerda, para a qual ele é o oponente ideal. As comparações feitas outrora entre Berlusconi e Jirinóvski, Haider ou figuras semelhantes parecem hoje bastante inadequadas. Mas ele não pode ser detido, para o espanto de seus inimigos e supostos companheiros, e a Forza Italia sai intacta de todas as eleições. Também a integração permanente dos pós-fascistas no governo, que causou os piores temores em toda Europa, não ocorreu: não só renunciaram rapidamente aos cargos ministeriais, como também se tornaram um partido liberal-conservador na tradição “gaullista” de uma forma muito mais convincente do que é admitido pela a esquerda tradicional.[3]

     A “comunidade dos democratas” também se impôs aqui, na medida em que a política midiática pós-moderna de Berlusconi teve de ceder à política tradicional dos corredores. O sucesso de Berlusconi, no entanto, não se deveu aos seus canais de televisão, como seus adversários querem nos fazer acreditar. Pois se estes aparecessem o tempo inteiro na tela, não teriam o mesmo sucesso popular que ele. O público o amava e o ama, e tal como figuras similares, gosta dele precisamente por causa do seu lado feio, que serve para muitas pessoas como figura de identificação (“Também eu gostaria de ser esperto”) e como pretexto para a sua própria desonestidade. Seja como for, seus problemas com a justiça não produziram nos seus fãs qualquer abandono da lealdade, pelo contrário.[4] Finalmente, seu sucesso não foi tão sensacional como parecia, mas ele assumiu as estruturas tradicionais de clientela dos democratas cristãos e socialistas de Bettino Craxi. Para poder continuar no jogo, no entanto, teve de renunciar ao extremismo e, apesar de recaídas e fracassos ocasionais, precisou se adaptar aos outros democratas. Isso se aplica tanto ao conteúdo quanto à forma: suas sugestões para introduzir novos métodos, como uma grande carreata em frente ao palácio presidencial, foram ridicularizadas mesmo entre os seus aliados e não se repetiram. Para o azar dos democratas honestos, até Berlusconi se tornou um deles.

     A comunidade dos democratas, no entanto, não só deteve o balanço do pêndulo à direita, como também à esquerda, ou para a “democracia” no sentido enfático. Os operadores da Mani pulite estão há muito tempo no banco dos réus (até agora no político). Em outubro de 1999, Andreotti, figura-chave da política italiana há mais de trinta anos, foi absolvido da acusação de instigar o assassinato de um jornalista e de ter mantido contatos estreitos com a máfia. O significado simbólico dessas absolvições não pode ser subestimado e, finalmente, incentiva novamente todos os vereadores a conceder contratos públicos apenas em troca de “presentinhos”, cada gerente de escritório a assediar seus empregados, cada motorista a estacionar na calçada. Há dois anos, quando dois desses julgamentos começaram, tal resultado ainda parecia impossível.[5] Mas, na realidade, era de se esperar. O sistema político italiano pode superar o fato, confirmado por todos os tribunais, de que, durante vários anos o poder ficou entregue a um corrupto comum chamado Craxi. Era difícil admitir, porém, que um assassino esteve no governo por trinta anos. Poucos dias depois da absolvição de Andreotti, falou-se mais do que nunca de uma anistia para Craxi, que fugira para a Tunísia, e Berlusconi obteve absolvições em dois dos seus julgamentos. O jogo parece ter virado completamente; fala-se em “restauração”, e de repente quase todos pensam que a Mani pulite foi apenas uma intriga política. Também aqui prevaleceu a comunidade dos democratas.

     Mas também isso ocorreu noutra área menos reconhecida. Não só os herdeiros dos fascistas e do grande capital provaram sua afiliação à família democrática, mas também a sua alegada antítese, os stalinistas.[6] É em si mesmo notável que, no final de 1998, com a eleição de D’Alema como primeiro-ministro devido a uma intriga parlamentar clássica, não só pela primeira vez na história italiana governa um “socialdemocrata”[7], mas sobretudo pela primeira vez a Europa Ocidental é governada por um ex-“comunista” ou stalinista. D’Alema não foi apenas um dos líderes do Partido Comunista (PCI) quando, em 1991, este mudou seu nome para Partido da Esquerda Democrática (PDS); ele já era presidente da Organização da Juventude Comunista FGCI em 1968, quando ainda pesava exatamente o quanto era permitido criticar a União Soviética e a invasão de Praga. Uma editora, a Edizioni Kaos, fez de fato chacota ao recolher em livro todas as declarações de D’Alema daquela época, que hoje provavelmente lhe são bastante desagradáveis. Quando o “ortodoxo” D’Alema foi eleito presidente do PDS em 1994 contra o “clintoniano” Veltroni, muitos jornais escreveram que o partido tinha voltado ao stalinismo após a era da reforma de Occhetto. Cinco anos depois, ele compete com Schröder e Blair em cortes e bombas.

     E, no entanto, D’Alema não é certamente um “renegado” no sentido de Fischer. O PCI é um modelo de como os “comunistas”, mesmo quando eram stalinistas impecáveis, nunca se viram como algo além de um aparelho substituto para a administração da sociedade da mercadoria. Insignificante durante sua existência ilegal sob o fascismo, desde 1944 o PCI sempre foi o segundo partido mais forte da Itália e o maior partido comunista na Europa Ocidental. Foi também o mais reformista, e paralelamente manteve uma fidelidade absoluta à União Soviética. Na Constituinte de 1947, votou a favor da Concordata que concedia ao Vaticano enormes privilégios que os socialistas e o centro burguês haviam rejeitado. Como recompensa, o PCI foi quase imediatamente expulso do governo, e a Igreja também ficou muito agradecida: alguns anos depois, excomungou todos os comunistas. Esse pequeno jogo se repetiria muitas vezes: embora nas classes dominantes a facção – apoiada pelos EUA – que considerava inútil fazer quaisquer concessões importantes aos comunistas sempre tenha vencido, estes últimos cumpriram fiel e diligentemente sua função de manter o potencial de conflito social sob controle – nos motins de 1948 e 1960, bem como nos subversivos anos 1970. A figura sombria de Palmiro Togliatti, presidente do PCI de 1927 a 1964, foi um exemplo dessa comunidade democrática. Como vice-secretário do Comintern, era um agente incondicional de Stalin. Na Guerra Civil Espanhola, sob o nome de Ercoli, assumiu a responsabilidade principal pela política stalinista, que sabotou a frente republicana por todos os meios, incluindo o assassinato. Mas também, durante as ondas de depuração na URSS, ele teria sabido muito sobre o assassinato dos comunistas húngaros e polacos ali exilados, como Bela Kun, que ocorreram na mesma época. Mesmo assim, esse homem de confiança foi um dos representantes mais convictos da participação dos comunistas na “democracia” italiana. Assim que voltou para a Itália na primavera de 1944, que tinha sido parcialmente arrancada aos alemães pelos Aliados, anunciou essa nova política na chamada “virada de Salerno” (conforme o nome de uma cidade nas imediações de Nápoles). Em um discurso aos funcionários do partido napolitano em 11 de abril de 1944, ele orgulhosamente proclama sua identificação com todos os “valores nacionais” e apresenta os comunistas como seus melhores representantes em comparação com os capitalistas e fascistas: “Eu desafio […] a encontrar uma única ação do nosso partido que contrariasse ou prejudicasse os interesses da Nação […] Antinacional tem sido a destruição das liberdades constitucionais que o povo conquistou em décadas de luta. De fato, permitiu que os grupos mais gananciosos e egoístas da sociedade italiana sacrificassem os interesses da Nação aos interesses exclusivos da sua casta”.[8] Ele se sente completamente amparado em Marx: “Estamos alinhados com o ensinamento e a tradição de Marx e Engels, que em nenhum momento negaram os interesses da sua nação e sempre os defenderam, tanto contra o invasor estrangeiro e usurpador quanto contra os grupos reacionários empoeirados”.[9] Os comunistas são melhores até mesmo no militarismo: Togliatti acusa os fascistas de terem encontrado ao tomar o poder em 1922 um exército que ganhara uma guerra e de terem “nos” deixado um exército derrotado, humilhado e desintegrado.[10] A classe é assim prontamente substituída por Togliatti pela comunidade nacional: em vista da miséria geral e da guerra em andamento “quase se diria que todos se sentem mais ou menos como proletários”.[11] Apenas os “grupos gananciosos e egoístas da plutocracia”[12] e os nazistas são inimigos, de resto, prega-se a trégua: o PCI quer “que todos os italianos, independentemente das diferenças de opinião política, crenças religiosas ou filiação a esta ou aquela categoria social, se unam para libertar o país da invasão estrangeira e da traição fascista”.[13] Claro que não há uma palavra sobre a revolução: “Eu sei, camaradas, que hoje os operários italianos não estão diante do problema de fazer o que foi feito na Rússia”[14], mas da participação na reconstrução da sociedade burguesa: “Como Partido Comunista, como partido da classe operária, estamos exigindo decididamente nosso direito de participar da construção da nova Itália”.[15] A única coisa importante, claro, é a “democracia”: “A nossa política deve tornar possível reunir em um bloco todas as forças antifascistas e democráticas, todas as verdadeiras forças nacionais” para criar um “regime democrático real e estável”.[16] Como democrata considera-se simplesmente qualquer não-fascista. Às acusações de que o PCI renunciou à revolução, ele responde reportando-se ao “senso de responsabilidade”.[17]

     Mas as tropas de Hitler ainda ocupavam metade da Itália. Se Togliatti diz: “um país que precisa fazer a guerra para se libertar da invasão estrangeira não pode exaurir suas forças em conflitos e insultos internos; deve ser forte para poder enfrentar todos os seus inimigos nos campos de batalha e no interior”[18], e assim exige “que seja criada em nosso país uma atmosfera de guerra e disciplina nacional rigorosa”[19], isso pode soar justificado naquela constelação histórica. Basta, no entanto, substituir a palavra “guerra” por “concorrência no mercado mundial” ou algo semelhante, para que essa frase seja também atual e assuma um significado diferente. Para os democratas há sempre algo em comum a ser salvo e, guerra à parte, não é muito diferente do que ocorre hoje: o PCI quer “atender os interesses elementares dos operários e, antes de tudo, acelerar a retomada de uma atividade industrial mais ou menos normal”.[20] Ebert já havia dito que o socialismo significa acima de tudo trabalhar muito. É duvidoso se os operários italianos assim o vejam, e Togliatti em verdade declarou: “Nossa política, talvez mais do que todas as outras, absorveu algo dos estratos médios intelectuais”.[21] O PCI quer defender “a liberdade para desenvolver a pequena e média propriedade”[22] , e a política por ele apresentada “é a única que permite um rápido renascimento da economia graças a um desenvolvimento permanente do nível de existência dos operários e camponeses, e à supressão de todas as formas de parasitismo econômico e social. Permitirá à Itália novamente se levantar e dando ao povo a paz, a calma e a prosperidade”, um programa verdadeiramente revolucionário.

     Em caso contrário, Togliatti foi absolutamente profético: “encarando concretamente a participação no governo, ou seja, o número e a importância dos ministérios, este não é um elemento decisivo para nós.[23] O decisivo é que “seja formado um governo de guerra democrático forte e respeitado”, e de fato o PCI teve que se contentar durante cinquenta anos com seu papel de mouro[24], que, caso cumprisse seu dever, poderia sair. “Toda a depuração [da administração pública pelos fascistas, AJ] deve estar subordinada às necessidades da guerra”,[25] disse Togliatti e, em 1946, como Ministro da Justiça de fato proclamou uma anistia para os fascistas que outras forças políticas não se atreveram a fazer cumprir. Tudo isto parece muito distante hoje em dia e parece servir apenas para confirmar mais uma vez como os stalinistas eram patifes. Mas os netos de Togliatti seguem agindo e retornam sem esforço ao seio da família democrática, de fato sem qualquer abjuração. É claro que o PDS tem agora vergonha de Togliatti e foi abolido o cabeçalho “fundado por Togliatti”, que por décadas esteve à frente do jornal do partido L’Unità, tal como na Rússia de Stalin os stalinistas caídos em desgraça desapareceram de todas as fotos. Na cisão de esquerda Rifondazione comunista, que existe desde 1991 (e recebeu cerca de 8% dos votos), uma esquerda mais radical vivia com uma ala de movimento composta por pessoas que não tinham aprovado a separação entre o PCI e a URSS nos anos 1970 e que continuavam a ver em Brezhnev o representante de um paraíso operário-camponês. Essa ala se separou no final de 1998, formando seu próprio partido, o “Comunisti italiani”, para entrar no novo governo D’Alema. Lá eles vivem pacificamente com os herdeiros de Craxi e com o antigo presidente Cossiga, de quem se pode dizer que, em 1978, foi pelo menos indulgente com o sequestro e assassinato de Aldo Moro, porque serviu para afastar os comunistas da esfera do poder. A ralé não briga por muito tempo. Afinal de contas, durante a Guerra do Kosovo os “comunistas italianos” ameaçaram corajosamente todos os dias deixar o governo caso a Itália não cessasse sua participação nos bombardeios.

     Mas mesmo aqui, o público foi avisado. Um dos líderes dos “comunistas italianos”, o jovem professor de direito Oliviero Diliberto, havia escrito uma defesa entusiástica de seu mestre na revista do partido Rifondazione, algumas semanas antes de ingressar no governo D’Alema na função que antes foi de Togliatti, ou seja, como ministro da Justiça (e que, em contraste com o seu antecessor “burguês”, ele exerce desde então para a completa satisfação de Berlusconi).[26] Ele acha exemplar que Togliatti tenha exigido na época que “a classe operária abandonasse a antiga posição de pura oposição e crítica para, ela mesma, assumir uma função de liderança ao lado das outras forças firmemente democráticas”[27] e que o Partido Comunista e as “massas” “assumam a bandeira da defesa dos interesses nacionais traídos pelo fascismo e pelos grupos que o levaram ao poder”.[28] Não por acaso, Diliberto considera muito atual a exigência de Togliatti de que “a classe operária e seu partido possam se apresentar como um governo melhor, mais competente e mais convincente do que as velhas lideranças”.[29] Também o seu escudeiro, o antigo historiador Luciano Canfora, não erra quando vê em Togliatti o grande democrata: enquanto na década de 1930, “os intelectuais democráticos concluem a partir do fascismo que a democracia parlamentar é de agora em diante uma experiência encerrada, das fileiras do movimento comunista surge a preocupação de reviver a experiência democrática”.[30] Por isso, elogia o propósito de Togliatti de retomar a “experiência de frente popular” da Guerra Civil Espanhola – à qual já mencionamos em que consistia. Naturalmente, a crença na democracia anda de mãos dadas com a crença no Estado: Canfora concorda com a afirmação de Togliatti, em 1963, de que o Estado não era essencialmente burguês, mas poder-se-ia usá-lo contra os grandes grupos monopolistas. Ele disse que não haveria problema para eles.[31] Que façam bom proveito.

     O desenvolvimento na Itália ainda está em pleno andamento, mais do que em outros países europeus. Mas uma coisa pode ser dita com certeza: ao contrário do que pensam os virtuosos democratas de esquerda, as tendências atuais, simbolizadas pela absolvição de Andreotti, não representam uma simples “restauração” que agora vai desfazer a celebrada fase do “ousar mais democracia”. E também não há um suspiro de alívio pela derrota dos ataques à democracia pelos obscurantistas de direita. O sistema pós-político pode muito bem tomar a forma de uma restauração aparente do status quo ante. Pois a situação política da Itália não será mais a da “Primeira República”. Isso pela simples razão de que, contra todas as probabilidades, prevaleceu um sistema de duas coligações que já não exclui ninguém da participação no poder. Quanto mais forte o vento, mais todos no barco têm de remar na mesma direção. O sistema político italiano está atualmente em uma posição melhor do que antes e eliminou algumas das suas irracionalidades, especialmente o fato de que anteriormente os dois partidos de direita e esquerda (MSI e PCI), que juntos representavam cerca de 40% do eleitorado, foram excluídos por muito tempo do poder, a despeito das suas boas intenções. Agora todos podem participar na administração de emergência, ora juntos, ora alternadamente. Foi dito à casta dos políticos que deveriam enriquecer sossegados, mas que não ficassem demasiado arrogantes, e por isso se fez pendurar uma pequena espada de Dâmocles sobre suas cabeças. Assim reformado, o sistema italiano pode até servir de modelo para os outros. O “modelo” italiano, por muito tempo disfuncional e quase absurdo que pareça aos seus vizinhos, sempre foi “pós-político”, “pós-moderno”. É muito mais adequado para os tempos atuais do que o “modelo Alemanha”, que só pode funcionar em condições ideais. Provavelmente, logo ficará claro que a transição para a pós-política significa menos uma “europeização da Itália” do que uma “italianização da Europa”.[32]

Krisis 23 (2000)

Tradução: Marcos Barreira

Die Gemeinsamkeit der Demokraten in Italien


[1] Na Itália, é assim que são chamados os grupos de poder que realmente contam, para além de todas as ficções democráticas.

[2] Figuras semelhantes tentaram subir ao poder em outros países – Polônia, EUA – ao mesmo tempo, mas apenas na Itália a operação foi bem sucedida.

[3] Mais precisamente, há muitas diferenças na linha oficial do partido, por exemplo, com a Frente Nacional de Le Pen; ao mesmo tempo, a Aliança Nacional consegue manter dentro do partido uma extrema direita ruidosa chamada “ala social” [sic], que é amplamente responsável pelos sucessos eleitorais na periferia das grandes cidades. De resto, as ideias fascitoides mais grosseiras e abertamente racistas são mais facilmente encontradas na “Lega” de Bossi, que, pelo menos como um partido, está em declínio.

[4]De fato, a partir de certo ponto, os meios de comunicação de Berlusconi foram muitas vezes os primeiros a relatar as novas investigações contra Berlusconi, que pareciam confirmar que o pobre homem foi vítima de um pérfido complô de juízes comunistas.

[5] Pelo menos Guy Debord já o previra em 1993.

[6] Enquanto o sistema político da chamada “primeira república” (até 1992) se baseava na exclusão permanente da extrema-direita (MSI) e da esquerda da esfera governamental, depois disso todos os partidos participaram em coligações governamentais durante um período de tempo mais ou menos longo. Tal como Guilherme II, o sistema já não conhece partidos, mas apenas democratas e sujeitos do mercado. Pois nem mesmo a liderança da Rifondazione comunista é contra o mercado (embora talvez alguns dos seus apoiadores o sejam).

[7]Com ele há novamente um genuíno político profissional no governo, depois dos seus quatro antecessores no gabinete de Primeiro-Ministro, como o novo Presidente Ciampi, que não eram políticos profissionais, mas vinham da economia e das finanças. Significativamente, o atual chefe do Banco Central, Antonio Fazi, também já fala como um futuro primeiro-ministro, embora ainda não tenha escolhe seu campo e esteja sendo cortejado por ambos os lados.

[8] Palmiro Togliatti, Opere, hg. von Luciano Gruppi, Band V, Editori Riunti, Roma 198, S. 10.

[9]  Idem, S. 15

[10] Idem, S. 10

[11] Idem, S. 13

[12] Idem, S. 32

[13] Idem, S. 17

[14] Idem, S. 15

[15] Idem, S. 16

[16] Idem, S. 18

[17] Idem, S. 25

[18] Idem, S. 20

[19] Idem, S. 30

[20] Idem, S. 27

[21] Idem, S. 27

[22] Idem, S. 32

[23] Idem, S. 26

[24] “O Mouro cumpriu sua tarefa; ele já pode ir”. Alusão à peça A conspiração de Fiesco em Gênova, de F. Schiller. [NdT]

[25] Idem, S. 29

[26] Quando fez o juramento de posse no palácio presidencial, respondeu à pergunta de um jornalista sobre o que sentia: “Um grande respeito pelas instituições” – ele será provavelmente o único. Mas também disse muito corajosamente que não estava entusiasmado, pois tinha se agitado pela última vez quando, aos cinco anos, ganhou um cavalo de balanço.

[27] Oliviero Diliberto, „Ripensare Togliatti“, in Rifondazione , Jahrgang II, Nr. 8, Oktober 1998, S. 66

[28] Idem, S. 65

[29] Idem, S. 67

[30] Luciano Canfora, „La riscoperta della democrazia“, in Rifondazione Jahrgang II, Nr. 8, Oktober 1998, S. 69

[31] Idem.

[32] Tomo a liberdade de indicar minhas observações na introdução ao meu Schade um Italien – 200 Jahre Selbstkritik, Eichborn, Frankfurt am Main 1997.

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