Marcos Barreira: Marx, Postone e a Questão Judaica

(Este texto é uma versão ampliada da apresentação do livro de Moishe Postone, Antissemitismo e nacional-socialismo)

Moishe Postone, Karl Liebkenecht e Karl Marx.
I

Em 1844, Marx travou uma polêmica a propósito da “questão judaica” com Bruno Bauer, seu antigo colega dos círculos hegelianos. Os artigos contra Bauer representam um momento importante na transição de Marx, de uma posição “filosófica” para a crítica dos fundamentos sociais das instituições políticas e religiosas. Bauer, pelo contrário, permanecia preso à crítica “pura”, concentrando-se no tema da alienação religiosa como obstáculo para a autoconsciência. Marx deixou-se influenciar inicialmente por essa “crítica radical”, que tomava a crítica da religião como “pressuposto de toda crítica”, mas, em 1843, quando redige os ensaios contra Bauer para os Anais fraco-alemães, a ruptura já estava consumada.

O primeiro desses ensaios, Sobre a questão judaica, contesta o ponto de vista apresentado por Bauer no ano anterior em um artigo sobre o mesmo tema.[1] Ateu e anticristão, Bauer definia a religião como “uma completa perda de si mesmo, somente superável por meio de uma total descristianização”.[2] Uma posição que ele tentou estender a Hegel, argumentando que a filosofia da religião deste último conduzia à destruição da teologia. Essa crítica reaparece no artigo sobre a questão judaica, que se desdobra no problema da exclusão política dos judeus pela religião de Estado durante o período de recomposição da Confederação Germânica. Ao adotar o cristianismo como religião oficial, os Estados alemães restringiam por decreto o exercício de funções públicas pelos judeus. Surgiu nesse contexto uma crescente demanda de liberdade política por parte das comunidades judias, que desejavam igualar seus direitos políticos aos dos outros alemães. “Lutando contra esta situação, os judeus encontraram-se objetivamente comprometidos na corrente geral contra as ordens políticas caducas instauradas na Alemanha, apesar das suas posições limitadas”.[3] É a propósito dessa limitação da reivindicação dos judeus que se dá a polêmica entre Bauer e Marx: “Bauer raciocinava assim: enquanto o Estado permanecer cristão, não pode atribuir direitos iguais aos judeus, que professam uma religião hostil ao cristianismo. Portanto, a emancipação política dos judeus pressupõe a supressão do Estado cristão. Mas, para obterem o seu pleno direito de lutar por esta supressão, os judeus devem renegar a sua religião. O ateísmo é a condição da emancipação política”.[4] A luta dos judeus contra os privilégios outorgados pelo Estado aos cristãos se esvazia aos olhos de Bauer como uma reivindicação particular, para se tornar parte de um problema universal. A emancipação política não seria possível a menos que judeus e cristãos renunciassem às suas religiões “exclusivistas”, favorecendo a assimilação dos primeiros ao Estado constitucional e fazendo do Estado uma esfera livre da influência religiosa.

A crítica de Marx a Bauer possui dois aspectos fundamentais, que se apresentam entrelaçados: a recusa da posição antirreligiosa do seu adversário e o problema mais geral dos limites da emancipação política no contexto da “miséria alemã”, i.e., no processo de desenvolvimento retardatário da Alemanha em relação às potências industriais daquela época.

Marx diverge totalmente de Bauer quanto à situação dos judeus nos Estados alemães: “Não afirmamos que eles [os judeus] devam primeiro suprimir sua limitação religiosa para depois suprimir suas limitações seculares. Afirmamos, isto sim, que eles suprimem sua limitação religiosa no momento em que suprimem suas barreiras seculares. Não transformamos as questões mundanas em questões teológicas. Transformamos as questões teológicas em questões mundanas”.[5] Essa posição de Marx já traduz uma nova atitude perante a religião, que não se contenta mais em mover-se criticamente no interior da teologia. A crítica da religião realizada pelos jovens hegelianos estava concluída, como disse Marx: “no caso da Alemanha, a crítica da religião chegou, no essencial, ao seu fim; e a crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica”[6] – o que também se evidencia na posição compartilhada por alguns dos seus contemporâneos mais próximos.[7] Ela ainda podia ser um “pressuposto”, mas já não bastava “humanizá-la”, como em Feuerbach, nem simplesmente rejeitar a religião como uma alienação, como fez Bauer. Na mesma época em que redige Sobre a questão judaica, Marx chega à fórmula que abre caminho para uma nova crítica social: ele se volta não diretamente para a religião, mas para as condições sociais da consciência religiosa. A religião chega mesmo a aparecer como uma “necessidade”, o “soluço da criatura oprimida”, “o ópio do povo”.[8] A superação da consciência religiosa dependia, portanto, da superação das circunstâncias reais nas quais essa consciência é formada. Marx também mostra que a religião não é incompatível com o Estado constitucional, uma vez que os direitos humanos admitem “o direito de ser religioso”,[9] e cita como exemplo os Estados Unidos, cujos estados se emanciparam da religião, sem que esta deixasse de se manifestar como força social viva: “Se até mesmo no país da emancipação política plena encontramos não só a existência da religião, mas a existência da mesma em seu frescor e sua força vitais, isso constitui a prova de que a presença da religião não contradiz a plenificação do Estado”.[10]

Essa última constatação nos leva ao segundo aspecto da crítica de Marx: o limite da emancipação política, na qual Bauer se atém para superar a questão religiosa. Ocorre que essa solução política representa não uma solução prática da contradição entre religião e Estado, e muito menos a emancipação do homem real em relação à religião, mas apenas a separação entre esfera pública, o “interesse geral”, e o que Hegel chamou de “sociedade civil”, isto é, a esfera privada na qual os indivíduos atuam de acordo com seus interesses particulares. A emancipação política era, em outras palavras, a dissolução da velha ordem feudal e seus laços estamentais e de dependência pessoal; mas essa dissolução, diz Marx, ocorreu a partir da redução do homem a “indivíduo egoísta independente”, de um lado e, de outro, ao “cidadão” do idealismo do Estado.[11] Aqui o homem ganhou apenas o direito à religião na esfera privada: “o homem se emancipa politicamente da religião banindo-a do direito público para o direito privado”[12], quando a religião deixa de ser o “espírito do Estado” e se converte no “espírito da sociedade burguesa”, que é também a “esfera do egoísmo” e da guerra de todos contra todos. Para não se mover mais no interior da teologia, a crítica precisa mirar não o Estado cristão, como queria Bauer, mas o “Estado como tal”. É justamente onde ocorre o pleno desenvolvimento do Estado político, cujo exemplo mais vivo era a “América do Norte”, que a crítica pode se voltar direitamente contra esse Estado, dissipando a confusão entre a parcialidade da emancipação política e o caráter geral da emancipação humana. A primeira constitui apenas a “forma definitiva” da emancipação no interior da ordem burguesa, não a emancipação propriamente dita.

De volta à questão judaica, prossegue Marx: “Não estamos, portanto, dizendo aos judeus, como faz Bauer: não podeis vos tornar politicamente emancipados sem vos emancipar radicalmente do judaísmo. Estamos lhes dizendo, antes: pelo fato de poderdes vos emancipar politicamente sem vos desvincular completa e irrefutavelmente do judaísmo, a emancipação política não é por si mesma a emancipação humana”.[13] Do mesmo modo como não basta o fim da religião de Estado para que a consciência religiosa desapareça, também as contradições sociais do mundo burguês não encontram uma solução na mera separação entre a esfera pública ideal e a esfera dos interesses privados concorrentes. Esta última é sempre mais real, pois é onde se dá a “existência sensível individual”.[14] A conclusão de Marx, no final do primeiro artigo é que, ao tomar o homem como uma abstração, o cidadão, a emancipação política libera o espírito egoísta da sociedade burguesa, o seu “materialismo”, que se expressa nos direitos do homem egoísta, separado dos outros homens, ou seja, as liberdades de propriedade, de comércio e, também, de religião. A verdadeira comunidade humana é reconhecida apenas em termos abstratos, na esfera dos direitos, enquanto a sociedade se dissolve na prática em indivíduos independentes. Cada uma dessas mônadas sociais enxerga nos demais um limite para a sua liberdade individual, nunca a realização da comunidade dos indivíduos. Daí que “a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o homem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais, quando o homem tiver reconhecido e organizado suas ‘forces propres’ [forças próprias] como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si mesmo a força social na forma da força política”.[15]

II

O segundo artigo publicado por Marx é um breve comentário acerca do texto de Bauer intitulado A capacidade de os atuais judeus e cristãos se tornarem livres, que retoma o problema da ruptura com a formulação puramente teológica da questão judaica, ainda que tivesse como pressuposto o programa iluminista de superação de toda mentalidade religiosa. Marx ocupa-se aqui não da essência abstrata do judeu, a sua religião, mas do judeu secular, “real”, a sua essência prática. Esse é, sem dúvida, um dos escritos mais polêmicos de Marx, redigido quando ele contava apenas 25 anos e que levantou contra o seu autor inúmeras acusações de antissemitismo. Ao colocar em um novo plano a relação entre ideias e formas sociais, Marx deu os primeiros passos para a superação da “ideologia alemã”; por outro lado, sua descrição dessas formas sociais reais ainda estava fortemente marcada pelo ambiente intelectual dessa mesma ideologia, onde metáforas antissemitas não eram de forma nenhuma incomuns. Em algumas passagens bem conhecidas de Sobre a questão judaica, Marx adotou a linguagem polêmica que circulava nesse ambiente – e, mesmo em sua obra madura, não se afastou inteiramente dela.[16] O “domínio do dinheiro” foi simplesmente identificado com o judaísmo, e esse domínio funcionava como uma definição da essência da sociedade burguesa: “identificamos, portanto, no judaísmo um elemento antissocial universal da atualidade”.[17] Em outra passagem bem conhecida, lê-se: “Qual é o fundamento secular do judaísmo? A necessidade prática, o interesse próprio. Qual é o culto secular do judeu? O regateio [Schacher].[18] Qual é o seu deus secular? O dinheiro”. O dinheiro é o deus que transforma tudo em mercadoria, o “valor universal” que despoja o mundo do seu “valor singular”.[19]

Essas passagens serviram de base para muitas acusações. É o caso de uma edição em língua inglesa dos textos de Marx publicada com o título distorcido “A world without jews”. Mesmo alguns dos biógrafos simpáticos a Marx se mostram desconfortáveis com essa questão. Para David Mcllelan “uma leitura rápida e irrefletida, particularmente da segunda seção mais breve [de Sobre a questão judaica], deixa uma má impressão”.[20] Em seguida, ele contrasta essa má impressão com a atitude favorável de Marx em relação à comunidade judaica de Colônia, mas o faz sem fornecer uma explicação adequada da posição teórica de Marx. Outro biógrafo, Francis Wheen, diz: “É verdade que Marx pareceu aceitar a caricatura dos judeus como agiotas inveterados”,[21] e justifica tal atitude com o argumento de que “quase todos” os contemporâneos de Marx identificavam o judeu com o comércio e o dinheiro com o judaísmo. Gareth Stedman Jones, por sua vez, não esconde o “uso estouvado e acrítico de imagens antissemitas”[22] e critica a “analogia forçada” que vê na figura do “judeu real” uma metáfora da prática cotidiana da sociedade burguesa. Jones acrescenta: “Quando já estabelecido em Paris e familiarizado com o discurso do socialismo republicano francês, Karl abandonou a terminologia do ‘judeu’ e adotou a noção mais ampla de ‘burguês’”.[23] Em todo caso, é preciso separar a terminologia empregada por Marx e uma atitude francamente antissemita, como a que foi usada, por exemplo, pelo socialista francês P-J. Proudhon, em cuja caderneta de 1847, publicada nos anos 1960, ele se referia aos judeus como a “raça que envenena tudo”, como os “inimigos da humanidade”, e pede a expulsão dos judeus na França, junto com a abolição da sua religião.[24] Uma diferença essencial entre os dois é que, por mais inadequada que seja a formulação de Marx, ela não particulariza os judeus, mas expande a sua “essência prática” para a sociedade burguesa como um todo. O judeu torna-se, então, uma simples manifestação particular do “judaísmo”, que é identificado com a dominação geral do dinheiro. Marx, como vimos, também não faz um ataque à religião dos judeus; ao contrário, ele defende a superação da consciência religiosa (não apenas judaica) a partir da superação dos seus fundamentos práticos.

Tais distinções não significam que não há uma aproximação desconfortável de Marx com a caracterização antissemita da sociedade burguesa e que a referência ao “judaísmo” como sinônimo dos aspectos negativos dessa sociedade correria apenas o risco de uma recaída na posição teológica que o próprio Marx criticou em Bauer, como argumenta Daniel Bensaïd em seu longo comentário ao texto de 1844: “Deixando de lado qualquer mediação histórica e social, a aproximação grosseira entre judaísmo e dinheiro corre efetivamente o risco de provocar uma recaída no quadro teológico, que Marx exige, ao contrário, suprimir”.[25] Essa argumentação serve apenas para contornar o problema, pois Marx deixa claro que já não se trata da religião, mas da sua “essência prática”, contra a qual o judeu e a sociedade como um todo teriam de se voltar. O que se manifesta em sua “forma pura” na consolidação do Estado político é o fundamento secular do judaísmo. Do mesmo modo, quando Marx, referindo-se novamente aos Estados Unidos, fala da “dominação prática do judaísmo sobre o mundo cristão”,[26] ele destaca não a “essência abstrata” do judeu e sim o fato de que naquele país, a pátria dos negócios, até “a proclamação do evangelho e o ministério cristão se transformaram em artigo de comércio”.[27] Esse problema, que é central no argumento de Marx entre 1843-44, não pode ser elucidado como uma simples recaída no debate teológico e muito menos como produto do atraso da cultura política alemã em relação ao “ambiente” revolucionário parisiense (o que fica claro no exemplo de Proudhon). Ele precisa, antes, ser decifrado como um momento de uma crítica truncada do capitalismo, na qual a análise da esfera da produção capitalista é substituída pela crítica reduzida à esfera da circulação – ou, mais precisamente, a crítica reducionista é apenas um primeiro momento, ainda fortemente ideológico, da crítica do capitalismo. O que está ausente em Marx no contexto em que ele aborda a questão judaica é precisamente o conceito de capital, por meio do qual ele vai superar essa posição que limita as contradições da “sociedade burguesa” ao domínio do dinheiro e que o aproxima perigosamente da visão de mundo antissemita corrente naquela época.

Isso significa que, em virtude da identificação secular do judeu com o dinheiro, a crítica da sociedade fixada na esfera da circulação tende a ganhar a forma de uma defesa do “trabalho honesto” contra o “capital rapinante”. Em seu Behemoth, que analisa a estrutura do nacional-socialismo, Franz Neumann já havia apontado como o anticapitalismo “especificamente germânico” seguia os passos de Proudhon na denúncia exclusiva do “capital rapinante”.[28] E também a socialdemocracia alemã cedeu a essa visão ao apontar a supremacia dos bancos sobre a indústria, como se alguns bancos controlassem toda a produção social.[29] Marx, por outro lado, nunca aderiu a essa visão limitada, pois seus textos de juventude já contêm uma crítica da alienação do trabalho; mas é somente com o desenvolvimento da sua crítica da economia política que ele vai superar o ponto de vista fixado na circulação, que ainda aparece no texto de 1844 como o domínio do dinheiro sobre a sociedade. Essa superação será concretizada, na obra madura de Marx, pela crítica da esfera da produção capitalista a partir do conceito de “trabalho abstrato”.

III

O nexo entre a concepção truncada do capitalismo e o sentimento antijudaico propagado até mesmo pela ala mais progressista do pensamento alemão em meados do século XIX foi interpretado quase exclusivamente a partir da identificação ideológica entre o judeu e o dinheiro. Essa ideologia, segundo algumas das explicações mais tradicionais, é que teria se tornado explosiva na crise dos anos 1920-30.[30] Tal explicação está fortemente ligada às condições do capitalismo liberal e a um contexto social ainda impregnado pela mentalidade religiosa. Ela permanece, assim, sem uma compreensão do papel desempenhado pelo antissemitismo no século XX. No final do século XIX, porém, a ideologia antissemita européia – especialmente a alemã – assumiu uma nova qualidade, que em poucas décadas resultou no programa inédito de extermínio planejado do povo judeu. Um passo decisivo para a explicação desse fenômeno foi dado por Moishe Postone em Antissemitismo e Nacional-Socialismo, publicado em 1982.[31] Postone apresenta nesse ensaio uma formulação original sobre a natureza do antissemitismo moderno, que é pensado a partir das categorias da obra madura de Marx, ou seja, em um quadro teórico muito distinto daquele que aparece no texto de 1844 sobre a questão judaica. Essa formulação, por sua vez, foi possível graças a uma nova leitura da teoria de Marx que aponta para uma reinterpretação fundamental de sua crítica do capitalismo.

Desde o final da década de 1970, Postone desenvolveu duas linhas de investigação que se cruzam precisamente na sua interpretação do Holocausto. A primeira – iniciada em 1978, com o ensaio Necessidade, trabalho e tempo[32]– o levou a uma reformulação do modo como deve ser compreendida a crítica de Marx ao capitalismo.[33] O cerne da crítica de Postone à tradição marxista é que ela interpretou a obra de Marx a partir de uma noção reduzida de capitalismo, definido como uma combinação de economia de mercado e propriedade privada dos meios de produção. Essa definição não questiona a forma historicamente específica da produção capitalista e, contra a visão que faz de si mesma, permanece limitada a uma crítica das relações de distribuição no interior do capitalismo. Isso resulta em uma crítica do capitalismo do ponto de vista do trabalho e não, como em Marx, na crítica do trabalho no capitalismo. Postone também resgata uma dimensão fundamental da teoria madura de Marx que consiste em ver a sociedade moderna como um modo de vida baseado em formas quasi-objetivas de dominação. Também aqui ele se distancia da ênfase na personificação das relações sociais – “relações de exploração de classe” – nas interpretações marxistas tradicionais. Nesse sentido, o traço distintivo do capitalismo em relação às sociedades anteriores, baseadas em formas diretas (pessoais) de dominação e de exploração, é a forma historicamente específica de mediação social pelo trabalho. Mesmo sendo produzida socialmente, essa mediação assume progressivamente um caráter abstrato e impessoal, conforme as relações capitalistas avançam sobre as formas sociais tradicionais e revolucionam a estrutura produtiva com base na Grande Indústria. Essa reinterpretação da teoria de Marx conduz então a uma redefinição da relação entre a mediação social específica do capitalismo e as formas de objetividade e subjetividade sociais.[34] Tudo isso terá implicações decisivas para a análise crítica dos desdobramentos cultural-simbólicos e ideológicos do desenvolvimento capitalista.

A segunda linha de investigação de Postone tem início também na década de 1970, período em que o autor viveu em Frankfurt e travou contato com a política judaica de esquerda.[35] Ela aborda o antissemitismo moderno – e os seus desdobramentos catastróficos na primeira metade do século XX – a partir das categorias do capital e da mercadoria. A teoria crítica madura de Marx foi pensada como uma teoria do capital, i.e., uma teoria das relações de produção. Nela, o trabalho é visto como a forma historicamente específica de mediação social do capitalismo. Marx jamais retornou ao tema do escrito de 1844, ainda marcado pela ideia de um “domínio do dinheiro”. Sua análise do capital avança no sentido de uma teoria das formas abstratas de dominação baseadas nas relações de produção (no “trabalho abstrato”). Em sua interpretação do antissemitismo moderno, Postone também não se contenta com uma explicação baseada na mera identificação do “judeu real” com o dinheiro e a esfera da circulação em geral. Ele parte dos conceitos de capital e de mercadoria como formas sociais e das implicações do desenvolvimento objetivo dessas formas em termos de construções ideológicas. Postone também distingue o antissemitismo moderno e a perseguição aos judeus ainda baseada fundamentalmente em tradições religiosas (uma distinção que já havia sido elaborada em outro contexto por Hannah Arendt).

É preciso “uma mediação muito mais determinada”, diz Postone, para apreender a natureza do antissemitismo que tomou forma no século XX e sua relação com o programa de extermínio posto em prática pelo Nacional-Socialismo. Seu ponto de partida é o avanço das formas abstratas de dominação – na Alemanha isso ocorreu no final do século XIX, como um processo de “modernização recuperadora” – e o modo como elas foram percebidas em meio à dissolução dos contextos sociais tradicionais. O antissemitismo moderno indica a existência de uma tensão entre formas modernas e tradicionais de socialização decorrente da modernização no interior das sociedades ocidentais avançadas. Por isso ele deve ser analisado a partir das contradições constitutivas do capitalismo, ao contrário das tentativas de reduzi-lo a uma ideologia secundária ou à lógica secular do “bode expiatório”. Para explicar os efeitos ideológicos dessa ruptura com as formas sociais tradicionais, Postone retoma um elemento central da teoria crítica de Marx: sabe-se que o “duplo caráter” do trabalho determinado pelo capitalismo constitui uma forma de socialização marcada pela tensão permanente entre o concreto e o abstrato.[36] Embora as dimensões concreta e abstrata sejam ambas constitutivas da relação capitalista – na teoria de Marx, isso corresponde à oposição entre “valor” e “valor de uso” da forma-mercadoria -, elas aparecem de modos diferentes e contrapostos: como uma oposição entre o dinheiro “abstrato” e a objetualidade do trabalho e da mercadoria. A imposição do capitalismo como forma geral das relações é um processo material-concreto de abstratificação das relações sociais. Ao se estabelecer como a forma geral das relações, o capitalismo produz uma ampla desestruturação dos contextos sociais tradicionais e um desenraizamento dos indivíduos em relação aos antigos papéis sociais. O antissemitismo moderno apreende essa nova época de crise como se ela resultasse da consolidação do poder do dinheiro. O dinheiro pode aparecer, assim, “como o único repositório do valor, como a manifestação do puramente abstrato, e não como a forma manifesta exteriorizada da dimensão de valor da própria mercadoria”.[37] Desse modo, a partir do hábito há muito assentado de associar os judeus com o dinheiro, eles passaram a encarnar o processo de abstração como tal, em oposição ao “trabalho” ou à “mercadoria”, que aparecem como processos naturais vinculados às necessidades concretas.  

O antissemitismo moderno começa então a ganhar contornos de uma visão de mundo abrangente. Ele se tornou uma ideologia reativa que atribuía aos judeus um enorme poder “por trás” das transformações do capitalismo: “os judeus já não são considerados meramente os possuidores do dinheiro, como sucedia no antissemitismo tradicional, mas antes responsabilizados pelas crises econômicas e identificados com o espectro de reestruturação e desarticulação sociais que resultam de uma rápida industrialização”.[38] Eles se transformam na personificação de uma força “misteriosamente intangível, abstrata e universal”.[39] Não se trata, é claro, de uma identidade imediata entre o judeu e o abstrato, mas do modo como o declínio das antigas relações agrárias e estamentais foi percebido e elaborado em termos ideológicos. Esse contexto difícil de apreender assume nas teorias conspiratórias a forma de um poder oculto e forte o suficiente para manipular as estruturas sociais. “É não apenas o grau, mas também a qualidade do poder atribuído aos judeus que distingue o antissemitismo de outras formas de racismo. Provavelmente, todas as formas de racismo atribuem um poder potencial ao Outro. Esse poder, contudo, é usualmente concreto, material ou sexual. É o poder potencial do oprimido (como reprimido), dos “Untermenschen” (“sub-humanos”). O poder atribuído aos judeus é muito maior e é percebido como real em vez de potencial”.[40] Ele se diferencia, assim, das formas racistas de discriminação que rebaixam os povos colonizados pelo Ocidente – e mesmo os povos das regiões agrárias da Europa – a uma condição de inferioridade. Nem no contexto específico alemão, nem no âmbito mais geral do colonialismo europeu essas formas de racismo evoluíram para um programa de extermínio.

O antissemitismo moderno gerado nesse processo de crise também se nutria de uma crítica romântica do capitalismo ligada à valorização do concreto, da natureza, da sensibilidade, da comunidade, por oposição ao universalismo abstrato da forma-mercadoria. Postone caracteriza assim o nazismo como parte de uma revolta anti-burguesa contra os efeitos da modernização, mas que permanece presa nas antinomias do capitalismo. Além da denúncia do dinheiro-judeu, tal revolta se baseava numa hipostasia do concreto. No entanto, por mais que sejam bem conhecidas as associações das ideias nazistas com uma concepção “orgânica” da sociedade, elas não são devidamente explicadas com referência ao núcleo fundamental do capitalismo. Trata-se, antes de tudo, do modo como o capital é apreendido em termos ideológicos: quanto mais avança a sua dominação, mais a oposição entre as dimensões “concreta” e “abstrata” da forma da mercadoria e do valor é resolvida por meio da externalização da primeira, que é a sua forma aparente mais imediata. Isso explica “o porquê de o antissemitismo moderno, que se opôs a tantos aspectos da ‘modernidade’, ser claramente omisso, ou até favorável, no que se refere ao capital industrial e à tecnologia moderna”.[41] A dimensão material-concreta do capitalismo, a despeito do papel decisivo da industrialização na desestruturação das relações tradicionais, pode então ser compreendida como “não capitalista”, ao mesmo tempo em que o seu caráter abstrato, o único que é visto como realmente capitalista, torna-se algo cada vez mais “misterioso” e “ameaçador”. Nessa crítica fetichista da sociedade burguesa, o processo social que dissolve tudo no valor de troca encontra finalmente a sua referência palpável na figura do judeu. Este aspecto decisivo do antissemitismo moderno, que ultrapassa o antagonismo entre capital produtivo e capital “rapinante”, foi resumido por Postone: “os judeus foram identificados não apenas com o dinheiro, com a esfera da circulação, mas com o próprio capitalismo”.[42]

Essa identificação dos judeus com o capitalismo é a chave para a compreensão do programa de extermínio total realizado pelo Nacional-Socialismo. Essa forma irracional de revolta anticapitalista alimentada pela crise que se seguiu à Primeira Guerra Mundial também fez parte de um processo mais amplo de transição do capitalismo liberal para um capitalismo burocrático. No entanto, nem a crise, nem a mudança geral dos padrões tecnológicos e burocráticos são suficientes para explicá-la. A pergunta fundamental aqui é sobre o caráter específico de uma construção ideológica mediada pelos novos padrões de ação em uma sociedade cada vez mais burocrática. Postone recusa as explicações correntes na tradição marxista, que tratam o Nacional-Socialismo, em última análise, como um instrumento da burguesia alemã contra as organizações operárias. Escapa inteiramente a essa abordagem o caráter central do antissemitismo para a ideologia nacional-socialista. E por isso ela não explica de modo adequado o programa fetichista de aniquilação levado a cabo pelo III Reich, que foi um momento essencial da guerra, ainda que não possuísse nenhum objetivo estratégico.[43] Não basta, porém, atribuir o projeto de extermínio dos judeus ao simples preconceito antissemita. Também aqui está ausente uma explicação que dê conta da especificidade do Holocausto. A resposta de Postone é que o caráter de “fim em si mesmo” do extermínio pode ser explicado apenas no contexto da revolta anticapitalista orientada para a “destruição do abstrato”.[44] Em seu delírio anticapitalista truncado, distorcido, os nazistas manifestavam ao mesmo tempo uma aversão ao “abstrato” e idealizavam de modo positivo o “concreto”. Essa dimensão concreta foi vista – na tradição da crítica romântica – como parte de uma ordem natural, biológica, enraizada organicamente na “comunidade”, em uma linha de continuidade que começava no trabalho artesanal e terminava na indústria moderna. Os judeus, de modo inverso, representavam o desenraizamento, o parasitismo e a degeneração desse estado natural e comunitário “saudável”. Eles foram associados ainda a outra dimensão capitalista: a condição de cidadão abstrato definido a partir da esfera político-estatal, que figura ao lado do dinheiro como uma abstração de segunda ordem. A condição do homem como abstração foi “superada” de modo regressivo, apelando-se à comunidade étnica.[45] Por isso, ela tinha de ser vinculada a uma noção pseudo-concreta, que produziria a “superação” da cidadania abstrata na reconciliação do povo com o Estado em uma base racial (völkisch).[46]

Uma vez que a base do antissemitismo era estabelecida não mais em termos cultural-religiosos, mas por critérios raciais, esse fato ajudou a modificar radicalmente a situação dos judeus na Alemanha. Já não era possível nenhuma integração ou assimilação, tal como ainda se debatia nos estados da Confederação Germânica em meados do século XIX. Havia, porém, outra distinção entre o ódio imediato aos judeus nos pogroms do passado e o massacre sistemático perpetrado pelos nazistas: é que esse ódio passou a ser socialmente mediado por um objetivo ideológico bem determinado. Os judeus eram a força corrosiva que destruía a sociedade e a cultura a partir de dentro e, ao mesmo tempo, estavam por trás de todas as ameaças internacionais. Isso explica o programa de extermínio realizado pelo Nacional-Socialismo, que o distingue fundamentalmente das outras formas de racismo. Os nazistas estavam imbuídos de um sentimento de missão que consistia em livrar o mundo da “fonte de todo o mal”. Foi apenas nesse contexto específico que “a superação do capitalismo e dos seus efeitos sociais negativos foi associada à superação dos judeus”.[47] Auschwitz, conclui Postone, foi “uma fábrica para ‘destruir o valor’, isto é, para destruir as personificações do abstrato”.[48]


[1]  Bruno Bauer: »Die Judenfrage«. Braunschweig, 1843.

[2]  Karl Löwith, De Hegel a Nietzsche. A ruptura revolucionária no pensamento do século XIX. São Paulo, Unesp, 2014, p. 393.

[3] Nikolai Lápine, O jovem Marx, Editorial Caminho, Lisboa, 1983, p. 203.

[4] Ibidem.

[5] Karl Marx, Sobre a questão judaica, São Paulo, Boitempo, 2010, p. 38.

[6] Karl Marx, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 145.

[7] “O juízo conclusivo de Ruge do ano de 1846 é idêntico ao de Marx e Stirner: Bauer é o último teólogo, um herético total, que perseguiu a teologia com fanatismo teológico, e, justamente por isso, não se livrou da fé que ele combate”. Karl Löwith, op.cit. p. 392. 

[8] Karl Marx, Ibidem , p. 151.

[9] Karl Marx, Sobre a questão judaica, p. 48.

[10] Ibidem, p. 38.

[11] Ibidem, p. 54.

[12] Ibidem, p. 41.

[13] Ibidem, p. 46.

[14] Ibidem, p. 53.

[15] Ibidem, p. 54.

[16] Como se sabe, Marx provém de uma família judaica; seu pai era um judeu que se convertera ao protestantismo sob a pressão das restrições profissionais impostas aos judeus. A linguagem adotada por Marx nos anos 1840 pode ser entendida como fruto da pressão da intelligentsia antissemita alemã de então, “que levou os judeus a atitudes de autonegação e autodestruição”, ainda que não se possa falar  em um “antissemitismo judeu”, porque isso significa “confundir o perpetrador com a vítima (mesmo a nível linguístico e cultural)” Robert Kurz, Schwarzbuch Kapitalismus.Ein Abgesang auf die Marktwirtschaftp. Eichborn Verlag AG, Frankfurt am Main, 1999, p. 179.

[17] Ibidem, p. 56.

[18] Idem. Na edição brasileira que utilizamos aqui, a palavra Schacher é traduzida como “negócio”, um termo bem mais neutro e sem a conotação que Marx pretendia atribuir ao judaísmo.

[19] Ibidem, p. 58.

[20] David McLellan, Karl Marx, vida e pensamento. Petrópolis, RJ, Vozes, 1990, p. 99.

[21] Francis Wheen, Karl Marx. Rio de Janeiro, Record, 2001, p.. 58

[22] Gareth Stedman Jones, Karl Marx: grandeza e ilusão. São Paulo, Companhia das letras, 2017, p.. 187.                                                  

[23] Ibidem, p. 189.

[24] Esse sentimento anti-judaico generalizado no pensamento de Proudhon foi abordado por Frédéric Krier no livro Sozialismus für KleinbürgerPierre Joseph Proudhon – Wegbereiter des Dritten Reiches. Köln/Weimar/Wien: Böhlau Verlag 2009.

[25] “Na e pela história”. Reflexões acerca de Sobre a questão judaica, In: Karl Marx. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010. pág. 97.

[26] Ibidem, p. 57.

[27] Idem, p. 57.

[28] [28] Franz Neumann, Behemoth. Pensamiento y ación em el nacional-socialismo, Fondo de cultura económica, Madrid, 1983, p. 358.

[29] Ibidem, p. 359.

[30] Max Horkheimer, “Die Juden und Europa”, Zeitschrif für Sozialforschung VII (1939), pp. 1-49.

[31] O ensaio foi publicado pela primeira vez em Merkur. Deutsche Zeitschrift für europäisches Denken. H. 1/1982, com o título Die Logik des Antisemitismus. Uma segunda versão, ampliada, apareceu em inglês com o título Anti-Semitism and National Socialism, em A. Rabinbach and J. Zipes (eds.), Germans and Jews Since the Holocaust, New York: Holmes and Meier, 1986.

[32] Moishe Postone, Necessity, Labor, and Time: A Reinterpretation of the Marxian Critique of Capitalism, Social Research, 45:4 (1978: Winter) p.739.

[33] Moishe Postone, TimeLabor, and Social DominationA Reinterpretation of Marx’s Critical Theory. New York and Cambridge: Cambridge University Press, 1993.

[34] “Essa abordagem redefine a questão da relação entre cultura e vida material em termos da relação entre uma forma historicamente especifica de mediação social e formas de ‘objetividade’ e ‘subjetividade’ sociais. Como uma teoria da mediação social, ela e um esforço para superar a dicotomia teórica clássica entre sujeito e objeto, enquanto explica historicamente essa dicotomia”., Ibidem, p. 5.

[35] Os primeiros textos de Postone sobre a questão judaica e o antissemitismo foram publicados em 1980, nos dois números especiais da revista New German Critique com o tema Germans and Jews.  No número 19, aparece o comentário Anti-Semitism and National Socialism: notes on the German reaction to “Holocaust”, sobre a reação à série de TV Holocausto, no qual Postone identifica uma importante mudança de atitude do público em relação à compreensão do Holocausto como algo diferente de uma simples perseguição racial e política. O número 20 de New German Critique traz a resenha do livro Fremd im eigenen Land [Estrangeiros no próprio país], que reúne relatos e comentários sobre os dilemas da comunidade judaica na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial.

[36]  Isso implica, de acordo com Postone, não considerar a produção no capitalismo como um processo de trabalho controlado apenas externamente pela classe capitalista, como se bastasse eliminar a propriedade privada para que a produção como tal seja usada em benefício de todos. Essa interpretação, corrente no marxismo tradicional, supõe erroneamente a dimensão concreta da produção [e do trabalho] como um fato natural, ontológico, que teria apenas de se libertar do que é identificado como não pertencente a essa dimensão – no caso do marxismo, o interesse de classe dos proprietários, considerado exclusivamente como a dimensão “capitalista”. Moishe Postone, TimeLabor, and Social DominationA Reinterpretation of Marx’s Critical Theory, cit.

[37] Moishe Postone, Antissemitismo e nacional-socialismo, p. 39, neste volume.

[38]Ibidem , p. 36.

[39] Ibidem, p. 33.

[40] Ibidem.

[41] Ibidem, p.39, neste volume.

[42] Ibidem, p. 45, neste volume.

[43] Sabe-se, por exemplo, que mesmo com a guerra praticamente acabada, quando já não havia qualquer esperança de uma vitória alemã, oficiais nazistas prosseguiam sem trégua a sua guerra contra os judeus.

[44] Ao definir o antissemitismo como a base da visão de mundo dos nazistas, Postone se opõe à tese defendida por Hannah Arendt de que o extermínio em massa teria sido apenas “executado” de modo burocrático e impessoal por “pessoas comuns” – também burocratas – motivadas pelo senso de dever ou pela mera obediência a uma estrutura hierárquica. Ainda que as ordens tenham sido executadas como uma missão burocrática por parte de funcionários do governo ou do partido, a “Solução Final”, como Postone argumenta, não seria possível sem o papel central do antissemitismo exterminador. Essa importância decisiva da ideologia – e com ela a própria especificidade do Holocausto – é subestimada por Arendt quando ela busca uma explicação geral para os crimes do nazismo como parte de sua teoria do totalitarismo: “… ao concentrar-se no aparato dos ‘executores’, Arendt [acredita] que está destacando aqueles aspectos do totalitarismo que não são exclusivos do nazismo e que devem ser enfatizados para que os dilemas políticos, morais e legais levantados pelos regimes totalitários sejam enfrentados de modo efetivo. No entanto, essa estratégia tem um preço: ela tende a dissolver a especificidade do Holocausto e, implicitamente, está baseada em uma interpretação completamente inadequada da ideologia antissemita”. Moishe Postone, Considerações sobre a história judaica como história geral. Eichmann em Jerusalém de Hannah Arendt, p. 163, neste volume.

[45] Como lembra Ernst Lohoff, “Quando os nacional-socialistas denunciaram em uníssono a República de Weimar e os partidos adversários como ‘judeus’, isso indicava mais do que um uso inflacionado do seu rótulo predileto”, pois também a noção abstrata de cidadania era desconfortável para o anticapitalismo “pequeno-burguês”. Ernst Lohoff, Geldkritik und Antisemitismus, in: https://www.krisis.org/1998/geldkritik-und-antisemitismus/.

[46] A partir da compreensão do papel da identificação do judeu com o capitalismo na ideologia propagada pelos nazistas também é possível desmistificar o seu “anticapitalismo” como uma versão mais abrangente do antissemitismo. Este não é um aspecto secundário das formulações do Nacional-Socialismo, mas o seu núcleo ideológico. Ele compartilhava com outras ideologias políticas modernas dos anos 1920-30 uma crítica do capitalismo liberal,  mas não pretendia nem era capaz de formular uma crítica das formas capitalistas de produção. Seu “anticapitalismo” preocupava-se mais com a criação de uma identidade nacional homogênea em termos raciais do que com problemas socioeconômicos, como o planejamento da produção, à maneira de ideologias modernizadoras rivais, que também possuíam um conceito limitado de capitalismo. 

[47] Moishe Postone, Antissemitismo e nacional-socialismo, cit., p, 46.

[48]Ibidem, p. 49.

INDIANA JONES E O TEMPLO DA PERDIÇÃO – O retorno do reprimido

Moishe Postone e Elizabeth Traube

Nota prévia: esse texto, escrito por Moishe Postone e Elizabeth Traube, apareceu na revista da crítica cultural Jump Cut em março de 1985. Postone e Traube analisam a dimensão ideológica de um dos maiores êxitos da industrial cultural da década de 80 a partir de uma perspectiva que alia a teoria social crítica à perspectiva etnográfica e feminista. A tradução é de Sérgio Oliveira, para a página da Krisis – Crítica da sociedade da mercadoria.

##

George Lucas e Steven Spielberg surgiram nos últimos anos como mestres do cinema de entretenimento de Hollywood. Eles se especializaram em filmes de ficção científica e de aventura, tecnicamente sofisticados, baseados na cultura popular das décadas de 1930 e 1940, e prometendo uma forma de recuperar os prazeres inocentes da visão de filmes infantis. No entanto, a mitologia tradicionalista e de alta tecnologia de Lucas e Spielberg carece de inocência, e isto em lugar nenhum é tão visível quanto em seu mais recente sucesso de bilheteria, Indiana Jones and the Temple of Doom.

Embora grande parte do debate crítico sobre este filme tenha girado em torno de seu valor de entretenimento e se era adequado para crianças, alguns críticos notarma que o filme projeta uma visão de mundo. Por exemplo, David Denby observou: “[…] é claro que Lucas e Spielberg não pretendem nenhum ‘comentário’ sobre o lixo pop de sua juventude. Pelo contrário, eles simplesmente encontraram o mundo em que querem viver” (New York Magazine, 4 de junho de 1984). Denby, contudo, não examinou os parâmetros desse mundo. J. Hoberman foi mais longe e caracterizou as premissas do filme como racistas e sexistas (The Village Voice, 5 de junho de 1984). No entanto, ele não se pôs a examinar o processo pelo qual essas ideologias são produzidas e transmitidas no filme. Nosso objetivo neste ensaio é examinar esse processo de produção ideológica em Indiana Jones.

A análise séria dos filmes de “entretenimento” encontra hoje uma resistência generalizada nos Estados Unidos. Tal postura é por si só ideológica. Ao voltarem-se para a cultura popular dos anos 30 e 40, Lucas/Spielberg estão expressando e ajudando a moldar um amplo anseio dos EUA, ascendente desde meados dos anos 70 e corporificado na presidência Reagan. É um anseio pelo retorno a tempos antigos, presumivelmente mais simples, um anseio provocado por um mundo cada vez mais complexo no qual a própria base da auto-compreensão dos EUA – a trajetória política, social e econômica ascendente dos EUA em relação ao resto do mundo – começou a desmoronar. A desorientação cultural resultante levou a um desejo de escapar das complexidades do presente, reforçado pela relutância em compreender os problemas sociais em termos sociais, algo profundamente enraizado na consciência popular dos EUA. Esse desejo de evitar as complexidades da vida é um tema básico nos filmes de Lucas-Spielberg. Os jovens super-bardos de Hollywood não se deliciam com nenhum heroísmo que opere dentro da sociedade, ou com o domínio das provações comuns e extraordinárias da vida. Ao contrário, eles celebram o desejo de fugir de todas essas complicações e disfarçam sua fuga da sociedade como uma aventura humana.

Mas não é simplesmente o desejo de escapar em direção ao passado que marca Indiana Jones; é também o conteúdo desse retorno. Sob o manto de uma nostalgia lúdica por filmes de aventura exóticos antigos, quadrinhos e seriados, Lucas/Spielberg ampliaram e deram novo alento a dois grandes temas da cultura de massas anterior, a saber, a dominação imperialista e patriarcal. Esses temas são reunidos em Indiana Jones através do que parecem ser enredos frouxamente conectados, a história de aventura e a história de amor. Ambos os enredos se desdobram em resoluções estruturalmente semelhantes, nas quais uma reafirmação irreverente do sexismo e do racismo antiquados aparece como a alternativa necessária às forças das trevas.

Não apenas o projeto ideológico do filme, mas também seu modo de operação latente devem ser analisados. É despertando e jogando com medos profundamente enraizados que o filme solicita nosso consentimento quanto à “retidão” da ordem que a resolução retrata. A história de aventura e a história de amor são integradas, projetando-se em um Outro cultural uma fantasia da sexualidade feminina como um poder maléfico, destrutivo e arcaico da morte. A subordinação desse poder torna-se então a pré-condição da civilização.

O episódio de abertura de uma boate de Xangai em 1935 reúne o arqueólogo e aventureiro Indiana Jones, uma showgirl e cantora chamada Willie Scott, e o ajudante de Jones, Short Round. Este último é um pequeno órfão chinês resgatado por Jones de uma vida de pequenos crimes urbanos, que adora seu pai adotivo e a princípio trata Willie como uma rival em potencial. Após uma breve série de aventuras, os três acabam em uma pobre aldeia em algum lugar do norte da Índia. Os aldeões estão famintos, e seu digníssimo chefe liga a situação de seu povo ao “poder da noite escura”, que mais uma vez surgiu no palácio de Pankot. Esse poder maligno está encarnado nos nefastos Tugues, historicamente um grupo de assassinos profissionais.

Os Tugues roubaram a pedra mágica da aldeia, o Shivalinga, que é um objeto ritual de forma fálica representando o deus Shiva. A perda desta pedra trouxe fome à aldeia e, para completar o ataque ao princípio de vida, os filhos dos aldeões foram sequestrados e escravizados no palácio. Jones concorda em resgatar a pedra ritual para os aldeões. Ele e seus companheiros se dirigem ao palácio, onde santuários sujos e morcegos vampiros prenunciam atividades sinistras. Esta premonição é rapidamente cumprida em um banquete repulsivo ao qual comparecem vários dignitários hindus e um oficial colonial britânico.

Naquela mesma noite, imediatamente após um encontro sexual interrompido com Willie, Jones descobre uma passagem secreta que leva a um aposento muito abaixo do palácio. Lá eles observam o sacerdote maligno realizar um sacrifício humano à deusa Kali, que representa as manifestações destrutivas da Deusa Mãe, e consorte de Shiva. Depois do sacrifício, Jones apodera-se da pedra dos aldeões e descobre as crianças da aldeia raptadas que estão labutando nas minas do palácio. Mas Jones e seus companheiros são capturados. Ele é forçado a beber o “sangue de Kali”, que rouba sua alma e o torna escravo da deusa. Como um teste à sua lealdade, Jones é ordenado a sacrificar Willie, mas naquele exato momento Short Round rompe o feitiço do mal ao chamuscar Jones com uma tocha flamejante. De volta a si, Jones resgata Willie do poço de lava sobre o qual ela está pendurada, liberta as crianças e conduz seus companheiros para fora das minas. A vitória final sobre os Tugues se dá no alto de uma ponte.

O filme tem a estrutura narrativa de um romance de aventura (quest romance), neste caso uma viagem de ida e volta ao inferno, um movimento da luz para as trevas, seguido por um retorno à luz. A história como um todo consiste assim de um “colchete” em torno do núcleo narrativo, que é a busca (quest) propriamente dita. Ritmo e tom, juntos, refletem e expressam a estrutura sequencial da narrativa. Como muitos críticos notaram, o ritmo intenso, cheio de ação e humor lúdico das seqüências de enquadramento contrastam fortemente com a atmosfera cada vez mais opressiva, densa e a ausência total de alívio cômico que caracteriza a seqüência central do filme. Para muitos críticos, o filme “derrapa” quando abandona seu ritmo acelerado e astuciosamente elaborado, perdendo seu senso de humor. Resta saber para onde o filme vai.

Não é difícil detectar as implicações ideológicas evidentes no filme. Como um de seus modelos, Gunga Din, Indiana Jones é uma variante cinematográfica do tema do “fardo do homem branco”. Ela procura representar o imperialismo como uma força civilizadora, socialmente progressista e, assim, legitimar a dominação ocidental sobre os outros. Ela o faz identificando a opressão com o sistema de governo indígena. Pois se o sofrimento dos povos indígenas é produto de suas próprias instituições, então essas instituições podem ser legitimamente suplantadas. Portanto, o filme não apresenta uma condenação geral da alteridade indiana, mas divide esta alteridade em duas categorias, que correspondem a um campesinato oprimido e uma classe dominante opressiva e exploradora.

Ao mesmo tempo, o filme constrói formas imperialistas e indígenas de dominação como polos opostos, negando assim a possibilidade de que essas formas possam ter algo em comum. O filme diferencia sem ambiguidade o domínio “legítimo” do “ilegítimo”. Uma forma de realizar essa divisão é usar as categorias de gênero masculino e feminino para expressar a diferença entre os governantes ocidentais e indianos. Essa estratégia implicitamente alinhou o conteúdo político do filme ao seu conteúdo psicossexual. Ela reforça poderosamente a representação do homem branco como o defensor paternalista da justiça contra a opressão e da ordem civilizada contra o caos feminino primordial.

O modelo de dominação política de gênero do filme coloca os aldeões na posição de crianças, dependentes da proteção paternalista do Ocidente. Dentro desse quadro, os aldeões estão representados de modo simpático, e de fato um sinal do status de Jones é seu interesse nos assuntos deles. Jones trata aldeões simples e espezinhados com grande deferência. Ele é retratado aqui como um homem esclarecido, com um respeito salutar e relativista pelas tradições culturais alternativas, uma espécie de Mr. Wizard antropológico.[1] Ele dá lições à Willie (e indiretamente à platéia) para se esquivar da comida intragável para hóspedes, que é tudo o que os aldeões famintos têm a oferecer. Ele fornece um modelo de conduta masculina para Short Round, que aceita educadamente a comida. Nestas cenas Jones atua como um cientista sabe-tudo, ego ideal para jovens garotos, além de campeão dos aldeões indefesos, tudo imbricado em um só. A relação paternalista do cientista branco com seu objeto de pesquisa ressalta o paternalismo mais geral da relação de Jones com a demanda dos seus necessitados.

No entanto, os aristocratas indianos são representados como radicalmente estranhos (alien) e monstruosamente malignos. Lucas e Spielberg procuram mostrar como o que parece belo e graciosamente opulento é realmente hediondo e depravado. Essa tática é parcialmente responsável pela perda de ritmo do filme. Muitos filmes utilizam uma convenção de manter uma tensão entre o exterior refinado do inimigo e sua verdadeira natureza interna, aumentando assim uma sensação de suspense. Lucas/Spielberg apenas brevemente aceitam essa convenção. O ministro do Marajá que cumprimenta Jones e companhia ao entrarem no palácio parece um homem culto, instruído, educado em Oxford. Antes de os convidados e dignitários reunidos se sentarem à mesa preparada luxuosamente, temos um rápido vislumbre de uma cultura cortesã indígena. Esta é praticamente a última imagem esteticamente agradável que o filme nos oferece. Há músicos, dançarinos e cantores, para não mencionar a própria Willie, que aparece vinculada ao toque de elegância indiana, tão radiante que Jones reconhece verbalmente pela primeira vez sua atração. O que é enfatizado nesta cena é o caráter sedutor e sensual da cultura cortesã indiana com sua beleza, charme e opulência galante.

Mas tais imagens do sedutor e deslumbrante Outro são rápida e irreversivelmente invertidas na cena do banquete. À mesa, Jones, o menino Marajá, seu ministro e o coronel britânico visitante discutem a história política do palácio. Tinha sido um centro do culto assassino dos Tugues que mais tarde foi suprimido pelos britânicos. Jones tem a certeza de que, apesar do que os aldeões possam lhe ter dito, o culto não existe mais. No entanto, em contraponto a toda esta conversa, temos diante de nós a prova visual de que o passado ruim de fato voltou. Somos bombardeados por imagens culinárias de cobras, enguias vivas, besouros, sopa de olhos e cérebros de macacos servidos no crânio. Lucas/Spielberg evidentemente gostam de brincar com sua comida, mas o jogo não é inocente. Evoca nosso nojo, não só pelo banquete, mas também pelo prazer lascivo com que os indianos consomem a comida repugnante. A cena do banquete não nos revela tanto a depravação por trás da sensualidade exótica, mas nos impressiona com a identidade da sensualidade e da depravação.

Embora a cena possa ter sido concebida para ser brutalmente humorística, esse humor serve para deslocar a atenção do espectador do conteúdo da conversa para o banquete infame. Tinha sido uma conversa que forneceu pelo menos fragmentos de material para uma compreensão histórica do conflito atual como um momento em uma história de conflitos. Esse tipo de entendimento fica implicitamente anulado pela ênfase da cena na representação culinária da alteridade. Esse deslocamento sugere que o passado ruim que retornou não deve ser entendido por meio do discurso, e que não pode ser interpretado em termos sócio-históricos. Ao contrário, a maldade é inerente à própria natureza do Outro, uma natureza que é explicitamente corporificada nos alimentos que o Outro consome. Tal representação implica que as circunstâncias históricas são, em última instância, irrelevantes para uma compreensão do mundo. O filme apresenta formas culturalmente diferentes de resistência e rebeldia. Mas então não as trata como fenômenos socialmente fundados e inteligíveis relacionados com formas de exploração, injustiça e desaforo social. Consistente com uma forte tendência atual nos EUA, o filme procura explicar o mundo em termos da natureza maligna do Outro e não em termos históricos.

O filme trata em seguida a sensualidade depravada como sinal do mal que emana de Kali. A Deusa Mãe sanguinária é retratada como cobiçosa da carne humana e adorada por multidões de seguidores em transe, agitando os braços, desumanizados. Vemos o coração pulsante arrancado de uma vítima sacrificial que, misteriosamente ainda viva, é então levada a uma piscina de lava, acompanhada por um crescendo de cânticos e batidas de tambor. Do que suspeitávamos na cena do jantar confirma-se pela cena do sacrifício humano. A cultura aristocrática indiana não é meramente decadente, mas brutalmente regressiva. E dentro da tradição ocidental, um sinal inquestionável dessa regressão é o triunfo do princípio feminino sobre o masculino: Shiva, o Senhor, foi rebaixado pela Mãe, a cujos pés a linga[2] agora repousa.

A cena que se desdobra dentro do Templo da Perdição é um amálgama suntuoso de incontáveis exibições hollywoodianas de cultos primitivos sinistros. Mas este filme desmascara a verdadeira natureza do inimigo de um modo específico. Da depravação sensual passa-se a retratar o mal selvagem. Depois ele revela como a selvageria é manipulada por uma classe brutalmente opressiva. Os líderes do culto não só empobreceram as aldeias, mas também exploram o trabalho infantil. As crianças raptadas devem labutar incansavelmente nas minas em busca de duas pedras sagradas que foram escondidas dos britânicos. O verdadeiro objetivo desse trabalho não é a riqueza natural, mas o puro poder dos seus senhores, pois as pedras desaparecidas são a chave para que as forças de Kali dominem o mundo.

A construção narrativa dos governantes indianos evoca no espectador um forte desejo pela sua destruição. À medida que a natureza maligna dos governantes é revelada em termos cada vez mais monstruosos surgem expectativas de ver uma resolução que erradique de uma vez por todas esse mal absoluto. Além disso, esta ansiada resolução serviria à justiça social, salvando os servos da tirania de seus senhores. No entanto, a representação da tirania inadvertidamente chama a atenção para outro mecanismo de produção ideológica. As imagens de crianças trabalhando indicam que o filme não só representa as classes dominantes indianas como negativamente estranhas (alien); ele também projeta nelas atributos das classes dominantes ocidentais. O trabalho infantil forçado em grande escala tem muito mais a ver com o capitalismo doméstico do século 19 e com o capitalismo do século 20 no exterior do que com a Índia tradicional. Além disso, existe de fato uma forma de produção onde o verdadeiro objetivo não são as coisas produzidas, mas o poder social abstrato que elas incorporam. Esta forma, a produção de mais-valor, não é encontrada na misteriosa escuridão de outras culturas, mas nas luzes da nossa própria. O filme transpõe uma crítica da classe dominante capitalista para as classes dominantes indianas e funde essa crítica com uma representação cultural da depravação e do mal estrangeiro. Seu projeto é desviar para o Outro aquela frustração e raiva que são geradas domesticamente. E há um produto ideológico nesse modo de projetar a raiva. Ela legitima o imperialismo como aparentemente progressista, como um canal de ação e uma missão civilizatória para o homem branco que não pode mudar as coisas em seu país.

Enquanto governantes exploradores, os indianos guardam uma semelhança mistificada com as classes dirigentes ocidentais. O filme, no entanto, faz um grande esforço para associar o inimigo indiano à feminilidade, que é retratada fugazmente como opulência sedutora e depois, em maior detalhe, como depravação sensual e caos primordial. Constituído em oposição a um mal selvagem, corrupto e feminino, o imperialismo aparece como uma força civilizadora, purificadora e masculina. Jones e os britânicos operam como outorgadores da lei, da ordem e da razão a um servo indefeso, que é tão infantil em sua dependência do paternalismo ocidental quanto vulnerável perante as forças da Mãe maligna.

No todo, está ausente em tais representações qualquer menção ao lado mais sombrio da dominação imperialista. Todavia, quaisquer que tenham sido os dons dos governantes coloniais da “civilização”, a força motivadora subjacente à expansão imperialista foi a exploração do trabalho, dos produtos materiais e das necessidades das sociedades colonizadas. Sobre esses assuntos, o filme se mantém significativamente calado.

Indiana Jones dificilmente representaria a exploração ocidental, uma vez que ele é em si uma forma de exploração. Sua descrição do Outro como um inimigo violento e perigoso constitui um ato violento e perigoso. Tal retrato reflete e produz concepções do mundo “lá fora” como o lugar do mal.

As características específicas da condenação autovalidante do Outro apontam para uma dimensão psicossexual dos processos ideológicos. Não diferente de muitos oficiais coloniais britânicos, a julgar por seus relatos, o filme parece concentrar-se na depravação sensual dos governantes indianos feminizados, enquanto apresenta a masculinidade contrastante dos “civilizadores ocidentais” de um modo sublimado. Jones e os britânicos rejeitam o prazer sensual perverso e buscam a gratificação no exercício moral do poder. A dinâmica psicossexual aqui emerge mais claramente no contexto da história de amor.

Em muitos dos filmes de aventura exóticos mais antigos, o “interesse amoroso” é manifestamente subsidiário e periférico à história de aventura, mas esta é apenas uma estrutura aparente. Indiana Jones traz a estrutura latente do romance-aventura muito perto da sua superfície, e assim revela os desejos e medos psicossexuais que residem no âmago do gênero.

Outros críticos chamaram a atenção para a caracterização sexista da heroína do filme. Willie é retratada como uma interesseira sem cérebro, chorona e incompetente, uma “loira burra” que contrasta fortemente com a heroína corajosa de Raiders. Em nossa leitura, no entanto, o filme revela inadvertidamente a superficialidade do seu retrato sexista da mulher, uma defesa contra um medo profundamente arraigado da sexualidade feminina. Já notamos que o episódio do templo quebra o ritmo e o tom em relação às sequências que o cercam, e que desperta um sentimento de horror generalizado. Este horror, argumentamos a seguir, está estruturalmente condicionado. Sua força deriva da natureza pouco dissimulada da busca como uma fuga da sexualidade, que se torna um encontro fantasioso com a feminilidade primitiva.

Esta trajetória se encontra implícita logo no início do filme em uma troca aparentemente trivial. Quando Willie ouve pela primeira vez que Jones é arqueólogo, diz ela, “Arqueólogos: achei que eram homenzinhos engraçados à procura de suas mamães (mommies)”.

“São ‘múmias’(mummies)”, diz Jones em um estalo e pensa que a corrigiu. Pouco tempo depois, ele é envenenado, e o frasco com o antídoto vai parar no seio de Willie. Jones, compreensivelmente, não tem tempo a perder com súplicas. Enquanto Willie demora para entregar o precioso antídoto, ele o retira dela à força. Tomando seu estado de desespero como paixão, ela protesta dizendo que “não é esse tipo de garota”. A cena é lúdica, embora estabeleça a tensão homem e mulher que organiza todo o filme. Subjacente a essa tensão está uma profunda ambivalência em relação à fêmea. Ou a mulher aparece para o homem, como ela aparece nesta cena, como uma figura desejável e revigorante que, no entanto, deve ser subjugada à força ou, corporificada em Kali, manifesta-se como uma ameaça mortal.

Esta ameaça informa a história de amor, com sua progressão estereotipada que vai do antagonismo inicial ao desejo. Jones e Willie não reconhecem abertamente sua atração mútua até que tenham entrado no palácio, onde Willie (que vimos pela primeira vez emergir da boca de um dragão de papel) é novamente metamorfoseada em uma sedutora exótica. Após a cena do banquete, Jones se opõe a Short Round e oferece solicitamente a Willie uma maçã, da qual ele dá a primeira dentada. Previsivelmente, isto inicia uma atividade sexual, que posteriormente suscita a questão do controle. Ela insiste que os seus encantos afrodisíacos o farão esquecer todas as outras mulheres. Ele argumenta, caracterizando-se como um pesquisador acadêmico da sexualidade feminina, que não vai antecipar os resultados de sua investigação. O resultado é que seus desejos mútuos não se satisfazem, e ele retorna ao seu quarto.

Ela tem um ataque de fúria, enquanto ele descarrega sua excitação frustrada por outros meios – envolvendo-se em uma luta até a morte com um enorme tugue que aparece repentinamente do nada. Ao se livrar de seu agressor, Jones corre para o aposento de Willie, aparentemente para ver se algum tugue a está molestando. Nos termos do filme, ela trai as limitações de sua natureza ao assumir que ele voltou para consumar a relação sexual deles. A realidade e a fantasia estão aqui invertidas. A suposição de Willie de que Jones tivesse voltado para continuar de onde eles tinham parado é feita para parecer tolice. Ela não entende que seu desejo foi subordinado ao “princípio da realidade”, ou seja, à luta com os Tugues, que estão em todos os cantos. Jones tem agora tarefas mais importantes do que o sexo. Sua busca no quarto o leva a uma voluptuosa estátua feminina; quando ele toca seus seios, abre-se uma passagem escondida. Willie olha, confusa e exasperada, e tenta chamar a atenção dele para os seios dela.

Dentro da lógica sequencial da trama, o que se segue é uma consequência direta de Jones ter evitado sexo com Willie. Afinal, se ele tivesse escolhido os seios dela em vez dos da estátua, a passagem nunca teria se aberto. Em outro nível, porém, o resultado é uma realização fantasiosa deste encontro sexual, expressa como um grande pesadelo. A fantasia passa do erótico para o anti-erótico, do desejo distorcido para a negação total do desejo. Em última análise, essa realização fantasiosa do sexo justifica a evasão da sexualidade.

Consideremos primeiro o que os espera na passagem que se abre quando ele toca os seios de pedra. Dentro dela não está apenas úmido, mas cheia de seres horríveis, milhões de insetos rastejando, coisas com pernas de todos os formatos e tamanhos. Não há um ritmo de aventura para este episódio. O espectador não se anima ou se entusiasma, mas está quase insuportavelmente enojado e repelido pelas imagens. Lucas e Spielberg prosseguem a cena com uma fantasia alternativa dos perigos que se escondem em lugares fechados e escuros. Jones e Short Round ficam presos em um aposento, cujas paredes começam imediatamente a se fechar sobre eles. Enormes espigões perfurantes surgem do chão e do teto, criando o efeito de terríveis mandíbulas devoradoras, uma variante explícita do tema frequente da “vagina dentada”.

Por mais perturbadoras que sejam estas imagens, elas permanecem dentro dos limites do medo do erotismo feminino. Mas a passagem mais para o interior é também uma passagem de volta, uma regressão da mulher como sedutora para Kali, a mãe primordial na qual a vida e a morte estão fundidas. Muito abaixo da terra, entre as pernas do ídolo pavoroso, há uma piscina de lava com um turbilhão que se abre e se fecha para que as vítimas sejam recebidas e consumidas. Voltar ao ventre de Kali é encontrar a própria morte; a “mamãe” de fato se tornou a “múmia”.

Quando Jones é capturado e é forçado a beber o sangue negro de Kali, há uma inversão simétrica de sua relação anterior com um seio feminino (ou seja, o de Willie). Agora o seio não é o objeto e sim o agente da violência; e o líquido que o homem é obrigado a engolir não é um antídoto, mas um veneno. Esse veneno submete o homem à mulher, e a sua cura é fálica.

O fogo seco da tocha de Short Round, o amor do filho adotivo do pai liberta Jones do feitiço de Kali e evita a ameaça de seu fogo líquido. Pouco a pouco, o filme readquire seu ritmo otimista e masculino de aventura e conquista. A jornada de retorno começou da escuridão para a luz, onde a ordem adequada é rapidamente restaurada. O sacerdote maligno e seus seguidores são derrotados por Jones e os britânicos, com uma pequena ajuda do poder fálico da linga de Shiva. A pedra e as crianças regressam à aldeia. Por último, Jones brinca com seu chicote para atrair uma Willie exteriormente recalcitrante, mas que cede interiormente, enquanto Short Round aparece em um elefante que esguicha uma corrente de água para o casal feliz. Mudando abruptamente para a perspectiva de Short Round, o filme nos lembra que seu propósito explícito é nos levar de volta àqueles anos de infância que Spielberg retratou em outros lugares rapsodicamente como felizes, despreocupados e sem sexo.

O que o filme apresenta como sua resolução é a reinstituição da Lei do Pai falocêntrica, alegremente empacotada como uma coisa infantil. Aventura e amor, os dois enredos aparentemente independentes, chegaram a resoluções estruturalmente semelhantes, baseadas na dominação e na submissão. O espírito aventureiro leve do início e do final do filme, juntamente com seu sexismo e racismo despreocupados, devem ser legitimados pela sequência central no Templo da Perdição.

Entretanto, o próprio filme aponta para uma resolução de natureza muito diferente, uma resolução que, embora não realizada, é obliquamente aludida por uma pequena, mas crítica, lacuna na trama. Para localizar esta presença ausente, devemos voltar rapidamente ao templo e à cena em que Jones em transe se prepara para sacrificar Willie. À medida que o momento da desgraça se aproxima, o público preve, por conta do sacrifício anterior, que ele será obrigado a arrancar seu coração. Sabemos que nosso herói não pode fazer nenhum mal irreversível e por isso aguardamos ansiosamente o momento de sua libertação, esperando que ele venha através da mulher. No entanto, nem Jones nem o sacerdote alcançam seu coração, e ela é levada ao poço com o peito intocado. Por quê? Aqui neste momento, onde a trama tropeça, o filme trai seu projeto ideológico, permitindo-nos, sem querer, vislumbrar uma resolução alternativa.

Jones é salvo no filme pelo fogo fálico e pela solidariedade juvenil. Cabe a nós reconstruir as implicações do caminho não escolhido. Quebrar o feitiço do mal tocando o seio da mulher teria significado superar o domínio de Kali, ao separar-se a mulher erótica e vivificante da mulher consumida, mortificante; ao separar-se o desejo e a morte, Eros e Thanatos. Isto, por sua vez, poderia ter sido a base para uma masculinidade radicalmente nova, uma masculinidade não mais obrigada a aliar-se a meninos pequenos, a fugir das mulheres em aventuras, ou a perceber a sensualidade como depravação. Mas como a masculinidade que é constituída no filme nunca se transforma, ela requer o contínuo domínio falocêntrico de tudo o que é feminino, e requer a exclusão da sensualidade. A vitória política da civilização ocidental sobre a classe dirigente indiana, juntamente com a conquista romântica de Willie por Jones, representa o triunfo dessa forma indiferenciada de masculinidade sobre a ameaça fantasiosa do princípio feminino.

Ao incluir uma resolução alternativa latente, o filme deixa claro que os valores que busca legitimar não estão mais fundamentados com segurança. Esses valores podem ter sido tomados como garantidos, mas já não o são. Apesar de si mesmo, o filme indica a impossibilidade de retorno ao passado como se o presente não existisse. Embora o filme seja obrigado a renegar o presente, sua tentativa de retorno ao passado exige a repressão psíquica quase violenta de novas possibilidades e sensibilidades. O reprimido reaparece então na forma projetada e parece ainda mais ameaçador. A instabilidade inerente de tal resolução pressagia um futuro retorno do reprimido, que por sua vez teria de ser negado e rejeitado com força ainda maior. O que quer que seja o auto-entendimento do filme, os ideais “heróicos” neoamericanos a que ele se apega não são inocentemente nostálgicos. Arraigados como esses valores estão em um sentido de ameaça e vulnerabilidade, eles se tornam perigosos em seu anacronismo. A “confiança recém-conquistada” dos Estados Unidos de Reagan está desgastada. Esse caminho de volta não é a saída.


[1] [N.t.] Referência ao programa de televisão Watch Mr. Wizard (1951-1965), que ensinava ciência para crianças usando objetos do cotidiano.

[2] [N.t.] Representação do órgão sexual masculino do deus Xiva, onde são depositadas oferendas.

“É PRECISO UMA NOVA PERSPECTIVA DE EMANCIPAÇÃO SOCIAL”

Conversa com Ernst Lohoff e Norbert Trenkle (grupo Krisis) sobre a crítica do valor, a crise fundamental do capitalismo e o crescente irracionalismo social (entrevista de Marcos Barreira e Javier Blank, Rio de Janeiro)[1]

Gostaríamos de começar falando um pouco do início do projeto teórico da revista Krisis, que já conta mais de  30 anos, e do contexto da esquerda alemã dos anos 1980. Como se deu a criação da revista e quais eram os seus objetivos iniciais?

Ernst Lohoff: A onda neo-marxista que tinha se alastrado por todos os países ocidentais na sequência do movimento de 68, estava em declínio a inícios da década de 1980, inclusive na República Federal da Alemanha. A esquerda acadêmica em especial era cada vez mais atraída pelas abordagens pós-modernas. Também o panorama dos protestos havia se transformado radicalmente em relação à primeira metade da década de 1970. Grupos com qualquer demanda geral anticapitalista desintegravam-se ou eram marginalizados. Em lugar disso, movimentos focalizados – na RFA sobretudo os movimentos ecológicos e pacifistas –  dominavam a cena.

     Os iniciadores do projeto Krisis viam nesses desenvolvimentos os sintomas de uma crise fundamental da crítica radical do capitalismo, da qual a Nova Esquerda tinha uma boa parte de cumplicidade. Uma ausência decisiva nos impulsionou: a Nova Esquerda tinha redescoberto a crítica do capitalismo, mas sem fornecer um novo fundamento teórico, adequado ao estágio de desenvolvimento que entrementes este havia atingido. Foram recuperadas abordagens anacrônicas tomadas da fase de ascensão da sociedade da mercadoria, como a do marxismo do movimento operário, ou fazia-se uma filosofia da própria ausência de um quadro adequado de referência teórica e entregavam-se a um espontaneísmo de pouco fôlego. No entanto, para uma reformulação bem-sucedida da oposição ao sistema, é indispensável uma teoria social crítica à altura do seu tempo – já naquele momento tínhamos essa firme convicção.

     O posterior grupo Krisis, cujos participantes provinham de diferentes segmentos da Nova Esquerda, formou-se com a intenção de contribuir com a negligenciada reformulação da crítica radical do capitalismo e de fornecer com a revista um foro para o necessário processo de elaboração teórica. O foco na fundamentação teórica da crítica radical do capitalismo já tornava o nosso projeto um empreendimento anti-cíclico, o que era reforçado pela ênfase no conteúdo de nosso processo de auto-compreensão. Quando nosso pequeno grupo de autores começou a interpretar criticamente as categorias básicas da teoria marxiana, como o valor, para torná-las fecundas para a análise do capitalismo contemporâneo, isso ia praticamente no sentido contrário do que era então  anunciado na esquerda teoricamente mais reflexiva. Em vista da nova dinâmica de acumulação liberada pelo desencadeamento dos mercados financeiros, o prognóstico de crise baseado na crítica do valor, segundo o qual o modo de produção capitalista destruiria seus próprios fundamentos, foi considerado como um absurdo evidente. Nos seus primeiros anos, portanto, a ressonância das abordagens da jovem crítica do valor foi lastimável. Naquele momento chamávamos ironicamente a revista como nossa “mensagem na garrafa”. Com a queda do socialismo real e do muro de Berlim, abriu-se uma brecha também no muro de silêncio e no desinteresse em relação à crítica do valor. O livro O colapso da modernização. Da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial, de Robert Kurz, foi a primeira publicação da crítica do valor que encontrou um público mais amplo. Isso não foi por acaso: o que restava da esquerda estava totalmente desconcertada com a auto-dissolução do bloco oriental e não tinha como se contrapor ao grito triunfal liberal da suposta vitória final da democracia e da economia de mercado. Mas a abordagem da crítica do valor foi capaz de fazê-lo.

No editorial da Krisis 8/9, que apareceu pouco depois da queda do muro, podemos ler: “não foi nenhuma novidade para nós o fato de a estrutura do socialismo real estar mais do que podre. A crítica radical da forma de reprodução do socialismo real foi, desde o início, um elemento central de nossa ‘crítica do valor’”[2]. Qual era, em linhas gerais, a visão do grupo sobre o modelo de socialismo de Estado?

 Norbert Trenkle: Já na década de 1980, ou seja antes do seu colapso, nós tínhamos criticado radicalmente o chamado socialismo real. Não porque pensássemos que representava um suposto desvio de uma ideia correta em si mesma, como argumentam até hoje os trotskistas, por exemplo, mas por algo mais fundamental: víamos ali um sistema de modernização capitalista recuperadora, portanto, uma variante específica de capitalismo, a ser abolida junto com ele. Falar de uma variante significa que ele tinha diferenças em relação ao capitalismo no “bloco ocidental”. Isso diz respeito principalmente ao papel central do Estado, que se explica essencialmente pela sua função como agente da modernização. Na Rússia periférica, o Estado criou os fundamentos e pré-requisitos para uma sociedade capitalista. Que esse „modelo“ de controle estatal da economia e da sociedade tenha sido posteriormente estendido a Estados muito mais desenvolvidos capitalistamente, se deveu principalmente ao desenlace da Segunda Guerra Mundial que, como se sabe, culminou na formação de dois blocos de poder global. No entanto, tratou-se em princípio de uma forma de manifestação do capitalismo recuperador no século XX. Desenvolvimentos semelhantes existiram em quase todas as partes da periferia capitalista. Também no Brasil o Estado desempenhou um papel importante na modernização econômica em meados desse século. Mas no socialismo real a estatização foi muito mais pronunciada e sobretudo ideologicamente carregada. O fato de o Estado buscar planejar e controlar completamente todos os processos econômicos e sociais foi percebido tanto pelos seus partidários quanto pelos seus oponentes como uma alternativa sistêmica ao capitalismo.[3]

     Contudo, lá existiam todas as categorias sociais e instituições que são essenciais para uma sociedade capitalista. Havia uma divisão da sociedade em sujeitos de interesse particulares, havia mercadoria, dinheiro e trabalho assalariado e inclusive um mercado, só que extremamente regulado e com os preços fixados pelo Estado. Não devemos esquecer, todavia, que no nível fundamental o próprio Estado moderno – com isso nos referimos a uma instituição que se opõe à sociedade como um aparato de domínio externalizado e centralizado, que tem ou pelo menos reivindica o monopólio da força – pertence ao núcleo fundamental da sociedade produtora de mercadorias.

     Essa externalização é expressão de uma estrutura básica contraditória da sociedade capitalista. Ela é dividida em produtores privados isolados e indivíduos privados, que estabelecem seu vínculo social ao perseguir, uns contra os outros, seus interesses particulares. Isso, no entanto, já contém a coisificação das relações sociais e sua autonomização em relação às pessoas. Enquanto sujeitos de interesse particulares, elas estabelecem relações entre si através das mercadorias. Como se sabe, Marx falou nesse contexto do caráter fetichista das mercadorias, pois as relações sociais das pessoas tornam-se relações entre coisas, enquanto estas têm vida própria em relação aos seus produtores. A posição central do trabalho no capitalismo está indissociavelmente ligado a isso. Como a essência da mercadoria não é outra que ser um produto do trabalho particular isolado, o trabalho ganha a função de instância de mediação social, significando que a maioria das pessoas deve, de algum modo, vender sua força de trabalho. Essa é também a razão de o trabalho gozar de um status moral tão elevado na sociedade capitalista e de ter sido adorado de forma religiosa no chamado socialismo real.

     Normalmente, a mediação pelo trabalho é regulada essencialmente pelo mercado, que sempre foi e continua a ser regulado estatalmente. No “socialismo real”, no entanto, o Estado buscou comandar o processo de mediação e a acumulação de capital por meio do planejamento de metas e fixação de preços, como era requerido pela modernização recuperadora. Isso pôde funcionar razoavelmente  enquanto ainda era preciso construir as indústrias de base mais importantes e uma infraestrutura geral. Aliás, isso veio acompanhado do violento enquadramento massivo das pessoas no processo de produção capitalista, que o stalinismo, como se sabe, desempenhou de maneira particularmente brutal. À medida em que a produção se tornava mais complexa e o nível de produtividade mais alto, os métodos do planejamento estatal centralizado e de coação direta tornavam-se cada vez menos funcionais. Isso foi evidente a mais tardar na década de 1970, quando também no Ocidente o regime de acumulação fordista entrou em crise e teve inicio a Terceira Revolução Industrial. O “socialismo real”, que já não podia acompanhar esse salto da força produtiva, ficou por isso cada vez mais para trás na concorrência no mercado mundial e, finalmente, esbarrou nas suas próprias fragilidades econômicas.

 Foi nessa mesma época que ocorreu a mudança do nome da revista e do projeto teórico, que parece diretamente motivada pela ruptura de época de 1989. O nome “Krisis” sugere não só a descrição de uma situação objetiva, mas também uma atitude, um “momento de decisão”. Quais eram então as expectativas a respeito do colapso do “socialismo real”?

Norbert Trenkle: a mudança do nome da revista [de Crítica Marxista para Krisis] não ocorreu por causa do colapso do socialismo real; este apenas deu o último empurrão. De fato, há algum tempo nos perguntávamos se a nossa posição podia mesmo ser considerada “marxista”. Pois um elemento essencial da nossa elaboração teórica naquela fase inicial era justamente a crítica ao “marxismo tradicional”, que para nós incluía praticamente todas as correntes marxistas existentes naquele momento. À diferença dessas correntes, retomamos o fio da teoria de Marx, que tinha sido ignorado ou distorcido completamente. Nossa abordagem desenvolveu a crítica do capitalismo como uma sociedade constituída em termos fetichistas, isto é, uma sociedade mediada pela produção de mercadorias e pelo trabalho, na qual as relações sociais defrontam os seres humanos como coações objetivas, como aparentes leis naturais. O marxismo tradicional nunca entendeu, e ainda não entende, esse aspecto crucial. Para ele, o eixo da crítica sempre foi e continua sendo a dominação de classe e a luta de classes, que vai junto com uma referência positiva ao trabalho. Até mesmo quando se discute o caráter fetichista da mercadoria, é comum que só se veja nele o encobrimento das relações de classe.

     Tínhamos atacado fortemente essa compreensão central do marxismo tradicional já nas primeiras edições de nossa revista, ainda na Crítica Marxista (MK). Em seu ensaio Trabalho abstrato e socialismo (MK 4), por exemplo, Robert Kurz criticou a referência positiva ao trabalho abstrato, e no MK 7, que apareceu em julho de 1989, Ernst Lohoff e Robert Kurz, no texto O fetiche da luta de classes, atacaram frontalmente o paradigma da luta de classes.[4] Ao mesmo tempo, em uma série de artigos em três partes, Peter Klein questionou o conceito afirmativo de democracia do marxismo tradicional e apontou que a democracia e o capitalismo não estão de forma alguma em oposição, mas se pertencem logicamente.[5] Em confronto com as concepções de democracia de Lenin, mostrou que a Revolução de Outubro foi desde o começo nada mais que uma revolução burguesa na periferia capitalista.[6]

     Finalmente, também nossa teoria da crise questionava fundamentalmente a autocompreensão do marxismo tradicional. De acordo com nossa análise, o capitalismo entrou em um processo de crise fundamental e insolúvel desde a década de 1970. Isso porque, com a transição para a Terceira Revolução Industrial, a aplicação do conhecimento à produção tornara-se a principal força produtiva, tendo o trabalho uma importância secundária. Do ponto de vista econômico, isso significava um deslocamento massivo da força de trabalho dos setores centrais da produção de valor e, assim, um derretimento da massa de valor.[7] Mas, ao mesmo tempo, a classe operária perdia seu lugar central para a acumulação de capital. Mas precisamente isso é incompatível com os fundamentos ideológicos do marxismo tradicional, que sempre se colocou desde o ponto de vista do trabalho. Quando chegava a admitir a ideia de uma crise fundamental, esta sempre era vinculada ao fortalecimento da classe operária, que o marxismo imaginava como o sujeito da revolução ou da transformação social. Era impensável que no curso da crise pudesse ocorrer exatamente o contrário.[8] Apenas por essa razão – mas não só por isso – o marxismo tradicional sempre rejeitou nossa teoria da crise, denunciando-a como „catastrófica“.

     Todavia, a nossa teoria da crise permite de fato uma análise bastante precisa dos processos econômicos, políticos e sociais desde as décadas de 1970 e 1980. Como já foi mencionado, uma das principais razões para o colapso do „socialismo real“ foi o fracasso final da tentativa de controle estatal de um sistema de produção geral de mercadorias, no contexto da Terceira Revolução Industrial. A transição para os métodos de produção em que o conhecimento é a principal força produtiva não pôde ser levada adiante com os meios de planejamento centralizado dos fluxos de valor. Baseados em nossa teoria da crise, tínhamos previsto isso já em meados da década de 1980; no entanto, ficamos um tanto surpresos quando o socialismo real desmoronou tão repentina e violentamente como um castelo de cartas. Contudo, uma análise no nível categorial fundamental não é necessariamente capaz de prever as datas exatas e percursos de tais processos; ela busca a explicação da conexão interna. Esse fato manifestou-se também – no sentido oposto – em relação às nossas previsões de crise para o sistema capitalista mundial. No início dos anos 1990 calculávamos que o processo de crise que diagnosticáramos progrediria muito mais rápida e violentamente do que realmente aconteceu. Em retrospecto, e com nossos atuais instrumentos da teoria da crise, a longa duração do processo de crise e seu percurso podem ser explicados teoricamente de forma conclusiva; mas, na visão daquele momento, o colapso do socialismo real pareceu-nos o prelúdio imediato de um desmoronamento do sistema capitalista mundial que viria muito rapidamente.

     Vimos no colapso do “socialismo real” um ponto de virada também em outro aspecto. Pensamos que ele significaria o fim do marxismo tradicional e que o campo estaria preparado para uma renovação da crítica fundamental do capitalismo e para uma transformação social radical. Infelizmente, estávamos errados também a esse respeito. As críticas ao capitalismo foram totalmente desacreditadas no público em geral e na discussão teórica durante uma boa década; mas, à medida que a crise foi se tornando cada vez mais perceptível e o capitalismo neoliberal, antes celebrado como vitorioso, caiu em desgraça, infelizmente o marxismo tradicional recuperou sua força. E o pior é que hoje ele é cada vez mais popular em uma versão restrita e regressiva, enquanto nacionalismo autoritário e populismo de esquerda, que muitas vezes mal se distingue do populismo de direita.

Ao longo da década de 1990, a posição teórica da Krisis se concentrou na crítica das formas básicas da sociedade moderna, o que se deu a partir de uma “dialética de ruptura e continuidade” com a crítica de Marx. Quais os principais elementos dessa crítica e o que há de “ruptura” em relação à antiga perspectiva marxista?

Norbert Trenkle: A crítica das formas básicas da sociedade capitalista esteve no centro de nosso trabalho teórico desde o início. Mas é verdade que nos anos 1990 ela foi aprofundada e desenvolvida consistentemente. Por exemplo, depois da crítica ao paradigma da luta de classes e à ontologização do trabalho abstrato, desenvolvemos a crítica ao trabalho enquanto tal, considerado por nós como a forma central básica, historicamente específica, da sociedade capitalista.[9] Além disso, percebemos que as visões invertidas e limitadas do marxismo tradicional não remontavam simplesmente a uma interpretação errônea da obra de Marx, mas estavam, pelo menos parcialmente, contidas e preparadas nela. Grosso modo, em Marx podem ser identificadas duas tendências que se contradizem fundamentalmente – pelo menos isso pode ser afirmado numa retrospectiva histórica. Designamos a primeira tendência como teoria da modernização, porque basicamente refere-se afirmativamente às categorias da sociedade capitalista, considerando-as como um estágio de transição histórica necessária para uma sociedade comunista. Reconhecemos aqui uma perspectiva da filosofia da história baseada no pensamento iluminista, que difere de Hegel e companhia apenas pelo seu chamado materialismo, na medida em que coloca o desenvolvimento das forças produtivas, do trabalho e da luta de classes como agente da história. No chamado materialismo histórico, essa figura de pensamento foi posteriormente caricaturada.[10] Isso sempre vai acompanhado da referência positiva ao trabalho, que aparece como uma categoria supra-histórica e dominada apenas externamente pelo capital. O trabalho pode, dessa maneira, ser afirmado como o ponto de vista da emancipação, e isso permite justificar o lugar da classe operária como o sujeito histórico predestinado a realizar o comunismo.

     A outra tendência na obra de Marx é a crítica radical das formas básicas da sociedade capitalista. Como se sabe, a principal obra de Marx começa com uma investigação sobre a essência da mercadoria, caracterizada como a „forma elementar“ da sociedade burguesa. Marx desenvolve sistematicamente a partir dai todas as outras formas básicas como valor, dinheiro e capital, designando este último como „sujeito automático“ da sociedade capitalista. Ao mesmo tempo, ele traça uma sequência ascendente de formas fetichistas cada vez mais desenvolvidas, começando com o fetiche da mercadoria, passando pelo fetiche do dinheiro e terminando no fetiche do capital. Sua teoria da crise está inseparavelmente ligada a essa „ascensão do abstrato ao concreto“, como Marx caracteriza seu método nos Grundrisse. Basicamente, a propensão à crise da sociedade capitalista já está contida na contradição entre o valor de uso e o valor de troca, porque nela é produzida a autonomização da riqueza abstrata, na forma do valor, em relação ao conteúdo material da produção.[11] É claro que, com isso, apenas é afirmada a possibilidade abstrata da crise, mas esse é o ponto de partida lógico necessário para traçar a insustentabilidade final do modo de produção capitalista.

     Não é nenhum segredo que nos vinculamos precisamente a esse Marx da crítica formal, que Ernst Lohoff em seu ensaio O Fim do Proletariado como o Começo da Revolução (Krisis 10, 1991), seguindo Roman Rosdolsky, chamou de „Marx esotérico“, pois ele tinha decifrado a estranha estrutura real-metafísica do capitalismo, portanto, seu caráter fetichista. Por outro lado, rejeitamos como historicamente obsoleto o „Marx exotérico“, o Marx teórico da modernização. Na sequência, Robert Kurz, formulou para esta questão a ideia do „duplo Marx“.[12] Pode-se falar, nesse sentido, em continuidade e ruptura em relação à teoria de Marx.

Essa crítica das formas básicas da sociedade burguesa conduziu à crítica do sujeito moderno. No início dos anos 1990, Roswitha Scholz sintetizou na afirmação “o valor é o homem“[13] a tese de que o sujeito moderno é estruturalmente constituído como “masculino” e que essa constituição está baseada na socialização pela mercadoria e pelo valor. Esse também foi o título de um artigo no qual ela apresentou o teorema do valor-cisão. O que vocês pensam desse teorema e da crítica desenvolvida a partir dele das relações de gênero no capitalismo?

Norbert Trenkle: O teorema do valor-cisão representa um passo importante no desenvolvimento teórico da crítica de valor porque relaciona sistematicamente a estrutura patriarcal da sociedade capitalista com a forma historicamente específica de socialização pela mercadoria, o valor e o trabalho. Isso o diferença de maneira fundamental das abordagens críticas do capitalismo comuns no feminismo, que normalmente procedem em termos meramente aditivos e entendem o patriarcado como uma forma adicional de dominação, ao lado da dominação de classe e da dominação racial, a chamada tripla opressão. Diferente dessa relação externa entre diferentes formas de dominação, o teorema do valor-cisão insiste na conexão constitutiva interna entre dominação masculina e sociedade capitalista. De acordo com isso, a socialização pelo valor depende necessariamente da produção constante de um „outro“ cindido, inscrito como feminino, no qual são externalizados todos aqueles elementos que não encontram lugar na racionalidade mercantil objetivada.

     Embora essa cisão esteja sujeita a mudanças históricas em sua configuração concreta, ela representa um princípio básico da sociedade da mercadoria, que se efetiva nos diferentes níveis do vínculo social. Isso é talvez mais evidente na esfera do trabalho, constitutivamente baseada na exclusão e definição como não-trabalho de toda uma gama de atividades que são indispensáveis para a manutenção da sociedade e predominantemente atribuídas às mulheres. No marxismo tradicional, isso equivale aproximadamente à divisão entre as esferas do trabalho e da reprodução. Mas a cisão não se limita de modo algum a uma relação funcional, no sentido das mulheres contribuírem para a reprodução da força de trabalho por meio de atividades domésticas e de cuidado não remuneradas. Pelo contrário, ela já é efetiva no nível fundamental da constituição do sujeito e molda no capitalismo o ordenamento hierárquico binário de gênero que, a despeito de seu abrandamento nas últimas décadas, ainda prevalece. O sujeito moderno constitui-se fazendo de si mesmo e dos outros um objeto. Isso está fundado na essência de uma relação social na qual as pessoas se confrontam como indivíduos isolados e se relacionam através da produção de mercadorias e do trabalho; mas, ao mesmo tempo, é uma característica essencial do que é considerado „masculino“ na modernidade capitalista.

     Nesse sentido, a frase “o valor é o homem” acerta o alvo. O sujeito moderno é essencialmente “masculino” no sentido de uma constituição historicamente específica, enquanto “o feminino” é definido na demarcação em relação a ela. Isso também está estabelecido na forma da relação social. O sujeito “masculino” só pode produzir e manter essa relação objetivadora com o mundo circundante criando uma contra-imagem que é, por assim dizer, o “recipiente” para os desejos, sentimentos e necessidade cindidos, que ele não pode se permitir enquanto sujeito. Embora essa imagem da “feminilidade” tenha mudado significativamente nos últimos tempos, a estrutura da cisão não foi abolida, mas apenas deslocada.

     Portanto, concordamos em princípio com o teorema da cisão desenvolvido inicialmente por Roswitha Scholz. No entanto, encontramos uma insuficiência no fato de o valor ser pensado ali apenas como um princípio estrutural abstrato em um meta-nível e, desta maneira, a forma-sujeito aparecer como uma espécie de apêndice do valor, determinado por ele. Isso restringe inclusive a crítica do valor-cisão a um meta-nível muito abstrato, que deve então ser complementado por acréscimos sócio-psicológicos e de crítica da ideologia. Assim, após a ruptura com Robert Kurz e Roswitha Scholz, tentamos desenvolver o teorema da cisão a partir da perspectiva de uma crítica fundamental do sujeito. Há alguns textos, especialmente de Ernst Lohoff e Karl-Heinz Lewed.[14] No entanto, temos que admitir que a nossa crítica do sujeito e, com ela, a questão da cisão de gênero, ainda precisa ser desenvolvida.

Na conjuntura de “alta da economia mundial” dos anos 1980 e 1990, o prognóstico de uma crise fundamental teve que desenvolver algum tipo de explicação sobre o processo de adiamento do colapso. Isso foi pensado inicialmente a partir da ideia do inchaço da “superestrutura financeira”. Podem falar um pouco mais a respeito dessa situação e das reações ideológicas provocadas pelo “adiamento da crise”?

Ernst Lohoff: Na década de 1970, o boom fordista do pós-guerra, que ainda se baseava no consumo massivo de trabalho vivo na produção industrial, estava esgotado. Assim, as duas variantes da sociedade da mercadoria, a estatista oriental e a da economia de mercado ocidental, entraram em uma fase de estagnação e crise. Nos Estados capitalistas centrais, manifestava-se o fenômeno da „estagflação“, a coexistência de queda do crescimento e aumento das taxas de inflação, enquanto a força de trabalho era demitida em massa. Os Estados do socialismo real, por sua vez, ficavam cada vez mais para trás na corrida da produtividade e não podiam mais competir na concorrência global. Mas, na década de 1980, as duas partes do sistema mundial de produção de mercadorias fizeram desenvolvimentos opostos. Enquanto a crise se aprofundava no „bloco oriental“, as economias de mercado ocidentais passaram por uma metamorfose que deu à acumulação de capital uma nova base – embora muito precária no longo prazo. A revolução neoliberal desencadeou os mercados financeiros e fez com que eles substituíssem o capital industrial como principal portador da acumulação global de capital. Surgiu um novo tipo de capitalismo, no qual a acumulação de „capital fictício“ (Marx), isto é, a propagação explosiva de créditos e títulos financeiros de todos os tipos, tornou-se o verdadeiro motor da economia.

     Essa metamorfose da acumulação de capital não podia, evidentemente, ser realizada no contexto do ordenamento estatista do socialismo real e, portanto, seu colapso era inevitável. Contudo, na perspectiva ideológica do liberalismo esse colapso apresentou-se como se, na luta competitiva entre dois sistemas completamente diferentes, tivesse prevalecido a organização social superior. O liberalismo – assim como o pensamento dominante em geral – não pode imaginar uma sociedade desenvolvida sem que ela esteja dissolvida em produtores privados separados e sem que a riqueza seja produzida na forma de mercadorias; por isso ele é basicamente cego para o fato de o socialismo real e o capitalismo ocidental representarem apenas duas variantes de uma forma de socialização historicamente específica. Ao invés de perceber que o desastre nos países do Leste profetizava a insustentabilidade final da forma de socialização baseada na mercadoria, no dinheiro e no trabalho abstrato, viu-o antes como a prova da grandeza e da racionalidade da sua própria variante do capitalismo.

     A ascensão econômica que acompanhou a transição para um capitalismo alimentado pela acumulação da indústria financeira sustentou esse erro de cálculo. Especialmente na década de 1990, quando o boom da “Nova Economia” levou as cotações das ações a patamares sensacionais, pondo em marcha a economia global, o otimismo no futuro renasceu. Naquele tempo de apogeu do neoliberalismo, reinava um clima de eufórico alvorecer em relação aos mercados que hoje é difícil imaginar. Antes da virada do milênio havia um relativo consenso em que a mudança para a “sociedade do conhecimento” traria ao capitalismo uma nova idade de ouro que desencadearia a “criação de valor”.[15]

     No “Fragmento das máquinas”, Marx tinha previsto, cerca de 130 anos antes, a perspectiva contrária a essa expectativa que dominava o clima social no final do século XX. A ascensão da ciência a principal força produtiva, de acordo com a afirmação central de Marx nas passagens dos Grundrisse, destrói a base do modo de produção baseado no valor e leva inevitavelmente ao seu colapso. Já na primeira edição de nossa revista, desenvolvemos essa ideia no sentido de que, com a Terceira Revolução Industrial, a visão de Marx estava se tornando realidade. A microeletrônica, como produto da ciência, é uma tecnologia universalmente aplicável que permite a automação abrangente de processos em todas as áreas de produção, distribuição e administração, e tem consequências muito diferentes das grandes revoluções tecnológicas do passado para o sistema de produção de riqueza capitalista. Se inovações como a máquina a vapor, o tear mecânico e o motor de combustão interna implicaram sobretudo em novos campos para a produção capitalista de mercadorias e, assim, possibilitaram um consumo adicional de trabalho produtivo, a microeletrônica é, por excelência, uma tecnologia de racionalização. O trabalho necessário para a produção de novos produtos digitais, como computadores, telefones celulares, etc., é desproporcional em relação à massa de força de trabalho liberada como resultado da digitalização em todos os setores de produção existentes.

     Nosso trabalho na teoria da crise focou-se durante muitos anos em fundamentar e concretizar a tese da crise fundamental da produção de valor. Mas também o fenômeno do “capital fictício” desempenhou sempre um papel importante em nosso argumento. Pois somente o inchaço dos mercados financeiros fornecia a explicação do porque a acumulação global de capital ainda não tinha sucumbido, mesmo que a base de valorização tivesse encolhido estruturalmente há muito tempo pelo deslocamento do trabalho vivo. Todavia, não apenas nos opusemos dessa maneira ao mainstream neoliberal, mas também à grande maioria da esquerda. Enquanto os ideólogos neoliberais, eufóricos, viam suas expectativas no futuro serem confirmadas pelo boom do mercado de ações, a maioria da esquerda resignava-se com o fato de que o capitalismo tinha finalmente triunfado. Nós insistíamos, pelo contrário, que a crise fundamental tinha sido apenas adiada, porque uma acumulação baseada na antecipação constante de produção futura de valor é insustentável no longo prazo. Por causa desse diagnóstico fomos rejeitados por ambos os lados como “catastrofistas” e „apocalípticos“.[16]

Em seu “Manifesto contra o Trabalho”[17], de 1999, também publicado no Brasil, vocês formularam de maneira muito contundente a crítica ao trabalho. Como foi a recepção do Manifesto e que significado teve para a divulgação da crítica do valor?

Norbert Trenkle: O Manifesto contra o Trabalho é, sem dúvida, a publicação do grupo Krisis que ganhou mais popularidade. Foi traduzido em pelo menos nove idiomas e é um dos textos mais frequentemente vistos em nosso site. Também circula em muitas páginas na Internet. A razão para esse forte interesse é, com certeza, o fato de a crítica contundente do trabalho abordar o sofrimento generalizado pela compulsão capitalista ao trabalho e pela crescente precariedade das condições de trabalho. Evidentemente, houve também fortes críticas, especialmente por parte da esquerda tradicional, para quem um manifesto contra o trabalho é mais ou menos tão absurdo quanto um manifesto contra a gravidade. Para eles, o trabalho é um princípio supra-histórico de socialização que não pode ser abolido. Mesmo em uma sociedade livre, portanto, as pessoas se socializariam através do trabalho e estabeleceriam por meio dele sua relação com a sociedade. A diferença em relação à sociedade capitalista seria apenas, então, que a mediação pelo trabalho seria “conscientemente” organizada. Mas isso é uma contradição em si, porque a mediação pelo trabalho é essencialmente – como Moishe Postone explicou detalhadamente – uma forma coisificada de mediação.[18] Ela é expressão de uma dominação das coisas mortas – os produtos do trabalho – sobre as pessoas e, como tal, subjaz ao fetichismo do mundo da mercadoria.

     Mas tenho a impressão de que a fixação no trabalho como um princípio positivo já não é tão forte, especialmente na geração mais jovem. Recentemente notamos, por exemplo, um interesse crescente no Manifesto a partir do movimento do “decrescimento”. Outros problemas surgem nessa recepção, contudo, devido ao campo teórico de referência. A crítica do trabalho é frequentemente entendida ali como se se pudesse sair individualmente das coações predominantes, por exemplo, reduzindo o consumo ou recolhendo-se em pequenos projetos locais. Não entendemos dessa maneira nossa crítica ao trabalho – e acho que deixamos isso claro no Manifesto. Em vez disso, colocamos o trabalho no centro da crítica, porque ele representa o princípio central da mediação social no capitalismo e, portanto, é a partir daí que a crítica fundamental dessa sociedade pode ser desenvolvida. A abolição do trabalho não pode, portanto, ser um ato individual ou local, isolado, mas só é possível no contexto de um amplo movimento de emancipação, que vise uma transformação social abrangente.

     Outro problema com a atual recepção do Manifesto é que ele tem quase 20 anos e, portanto, naturalmente não reflete o estado atual de nossa teoria e análise da crise. Para sua quarta edição em alemão, que será lançada no final de 2018, preparamos um minucioso epílogo atualizado que dá uma visão geral das inovações teóricas – nem um pouco irrelevantes – dos últimos 15 a 20 anos e ao mesmo tempo trata do aprofundamento do processo de crise que ocorreu desde então.

Essas inovações teóricas começam a ganhar corpo  no livro “A grande desvalorização”, publicado em 2012, onde vocês empreendem a tentativa de explicar as causas da crise financeira de 2008 e ao mesmo tempo continuar desenvolvendo o conceito de capital fictício. Quais são as ideias gerais do livro?

Ernst Lohoff: o ponto de partida do livro A grande desvalorização[19] é também, naturalmente, a idéia central da teoria da crise da crítica do valor, isto é, a crise fundamental da produção de valor. Na primeira parte do livro ela é mais uma vez desenvolvida, com alguns esclarecimentos e acréscimos. As inovações teóricas se encontram, sem dúvida, na segunda e terceira partes e dizem respeito ao capital fictício, isto é, à acumulação de capital na indústria financeira e suas leis de movimento específicas.

     Há um bom motivo para isso: antes do livro A grande desvalorização, as explicações sobre a categoria de „capital fictício“ eram deficitárias em relação à clareza categorial com que a crise da valorização do valor tinha sido analisada pela crítica do valor nas décadas de 1980 e 1990. Se tínhamos adotado esse termo, até então extremamente negligenciado na discussão marxista, o fizemos em uma interpretação ambivalente em relação à essência da teoria da acumulação na tradição marxista. O marxismo obsoleto conhece, basicamente, apenas a acumulação de capital baseada na acumulação de mais-valia e considera os eventos no mercado financeiro, em última instância, como um jogo de soma zero que culmina em uma mera redistribuição da riqueza capitalista existente. Ao insistir em que o capital fictício tinha substituído há anos a valorização de valor como força motriz da acumulação de capital, a crítica do valor concedia aos eventos do mercado financeiro um significado intrínseco no processo de acumulação, algo incompatível com a compreensão do marxismo tradicional. No entanto, a diferença fundamental entre a formação de capital fictício e a acumulação de capital baseada na criação de valor foi estabelecida de forma tal que ficou no meio do caminho. Para elucidar o caráter precário da criação de capital fictício, utilizavam-se expressões tais como “acumulação aparente” que, em vez de explicar qualquer coisa, apelavam a um preconceito de “autenticidade metafísica” resultando em que só contava de verdade a “economia real”, enquanto a esfera financeira apenas obscurecia as relações econômicas reais.[20]

     Nosso último livro da passos decisivos e completa a lacuna na elaboração teórica da crítica do valor. Seguindo as considerações fragmentárias de Marx no livro III d’O Capital sobre o capital portador de juros, desenvolve uma crítica da economia política da formação de capital fictício. O ponto de partida é o seguinte: como afirmado por Marx, a concessão de um empréstimo ou a emissão de ações permite ao capital monetário cedido ter, temporariamente, uma dupla existência. Ao lado da soma original de dinheiro disponível para o devedor ou para a empresa emissora de ações, e pelo prazo do empréstimo ou da ação, entra a reivindicação monetária do credor. Se essa reivindicação monetária se tornar por sua vez uma mercadoria negociável, então a duplicação torna-se relevante em termos da teoria da acumulação. Neste caso, a imagem espelhada do capital inicial representa uma parte da riqueza capitalista total tanto quanto o próprio capital original. Esse estranho mecanismo constitui a base da acumulação global de capital no capitalismo atual. Na medida em que a massa de títulos financeiros, isto é, as reivindicações monetárias negociáveis enquanto mercadorias, aumenta mais e mais rápido, também o sistema de riqueza abstrata no seu conjunto pode manter o curso de expansão.

     Ao contrário do que se afirma nos livros de economia e nas ideias do marxismo tradicional, nos mercados financeiros reside uma potência própria de formação de capital e, com a enorme expansão desse setor, tornou-se o verdadeiro motor do funcionamento capitalista como um todo. É claro que o predomínio da acumulação da indústria financeira não significa um desacoplamento completo do processo de acumulação da economia real. Não pode haver dúvida sobre isso, pois a própria formação de capital na indústria financeira sempre precisa de pontos de referência na economia real. Embora não precise mais de valorização já ocorrida, isto é, produção de mais-valia, ela capitaliza expectativas de ganhos futuros ou, em outras palavras, ela representa a acumulação de valor futuro a ser produzido. Mas, como tal, depende de expectativas e esperanças de futuros aumentos de lucro nos mercados de bens ou, pelo menos, em determinados mercados de bens. Nenhum boom imobiliário acontece sem a perspectiva do aumento dos preços dos imóveis, nenhuma alta na bolsa ocorre sem a esperança de lucros empresariais futuros.

     Essa dependência em relação aos portadores de esperança na economia real explica a gestação de crises da época do capital fictício. Sempre que tais expectativas se mostram como puras ilusões e que as bolhas especulativas estouram, não só bloqueia-se a necessária formação de novo capital fictício, mas também o capital fictício já empilhado perde retroativamente sua validade social. Ameaça então, como mostrou recentemente a crise global de 2008, uma espiral econômica descendente na qual se manifesta o processo basal de crise encoberto pelo inchaço da superestrutura financeira. Isso só pode ser evitado de uma forma: criando novas quantias ainda maiores de capital fictício em algum outro lugar, se necessário com a ajuda efetiva dos Bancos Centrais. No entanto, até mesmo essa “solução” é apenas temporária. Na medida em que os potenciais portadores de esperança da “economia real” se dissipam, e as montanhas a serem descartadas de futuro capitalista queimado se tornam cada vez mais altas, também o capitalismo carregado pela acumulação na indústria financeira atinge seu limite interno.

Isso ajuda a explicar porque em publicações mais recentes do grupo Krisis fala-se, por exemplo, em um “novo tipo de capitalismo”, um “capitalismo inverso” e uma “era do capital fictício”. O que esse tipo de formulação traz de realmente novo em relação à abordagem teórica anterior?

 Ernst Lohoff: O termo inversão enfatiza antes de tudo que, na criação do capital fictício, o ordenamento temporal entre a formação de valor e a de capital é fundamentalmente invertido em relação ao movimento do capital funcionante. No ciclo do capital funcionante, a criação de capital novo é sempre o resultado do processo de valorização. Primeiro vem a valorização, depois a formação de capital. Ao contrário, a formação de capital fictício por meio do mecanismo de duplicação do capital original precede sempre sua possível valorização. O valor ainda não criado é transformado antecipadamente em capital social adicional. Como já foi dito, o sistema capitalista mundial num todo baseia-se desde a década de 1980 nessa forma de geração de capital por meio da antecipação de valor. Mas isso – e a isso refere-se sobretudo o termo “capitalismo inverso” – virou de cabeça para baixo a relação entre a esfera financeira e o capital funcionante. Considerados a partir da lógica geral da sociedade capitalista, os mercados monetários e de capitais são uma esfera derivada. O fato de o capital monetário se tornar uma mercadoria e de surgirem mercados para negociar essa mercadoria específica já pressupõe que a produção de bens tenha assumido a forma de produção de mercadorias e esteja sujeita à finalidade da valorização de capital. Nesse sentido, pode-se falar de uma superestrutura financeira que recobre o mundo do capital funcionante. No capitalismo atual, entretanto, essa „superestrutura financeira“ tornou-se o principal suporte da acumulação de capital e, portanto, paradoxalmente, a indústria básica de todo o sistema. A produção de rendimentos na esfera financeira não é mais o apêndice da extração de mais-valia, como no capitalismo clássico; antes, a acumulação de capital funcionante tornou-se uma variável dependente da formação do capital fictício. Para expressar essa inversão, substituímos o termo corrente “capitalismo dominado pelo mercado financeiro”, que não diz nada em termos de teoria da acumulação, pelo conceito de “capitalismo inverso”.

     O termo “época do capital fictício” tem um pano de fundo semelhante e representa uma espécie de contraposição em relação às designações habituais do último estágio de desenvolvimento do capital, tais como “a era da globalização” ou “a era do neoliberalismo”. O primeiro termo é vago e puramente fenomenológico; o último, coloca no centro a questão da ideologia dominante. O termo “época do capital fictício” indica o que, de acordo com nossa análise, é a principal característica estrutural do capitalismo atual.

     A teoria do “capitalismo inverso” está de fato associada a algumas inovações em relação ao estado anterior de elaboração teórica da crítica do valor. Já a questão a partir da qual é considerado o problema da criação de capital fictício mudou significativamente. Nos anos 1980 e 1990, queríamos apenas provar que a acumulação de capital fictício era uma forma muito precária de formação de capital. A questão norteadora em nosso livro A grande desvalorização é outra: como funciona essa forma tão precária quanto miraculosa de formação de capital? Nos textos mais antigos, o tópico era apenas o (rápido) fim da dinâmica da criação de capital fictício. A lógica interna da época foi pensada, assim, a partir de seu fim antecipado e, portanto, a análise permaneceu opaca. Nossa nova abordagem é projetada para analisar a história interna da época do capital fictício. Mas isso requer um instrumental categorial apropriado, com o qual a multiplicação do capital fictício possa ser entendida como uma forma de acumulação de capital própria. No livro A grande desvalorização desenvolvemos esse instrumental e em textos posteriores aprofundamos e precisamos essa análise.[21]

     Mudar o centro de gravidade do conhecimento é também, evidentemente, uma resposta para a transformação da situação histórica. Formulamos pela primeira vez nossa teoria da crise precisamente quando começavam os anos dourados do capitalismo inverso. Assim, essa teoria só podia estar orientada para o prognóstico. No mais tardar com o crash de 2008, tornou-se evidente a crise do capitalismo baseado na dinâmica da criação de capital fictício. Só por esse motivo, a abordagem da crítica do valor precisava mudar para o diagnóstico de crise. Sua tarefa é explicar o processo de crise de forma mais coerente do que outras teorias. Mas isso requer uma teoria sofisticada da criação de capital fictício.

     Mas há outro aspecto importante: diante das ideologias atuais de processamento das crises, é urgentemente necessário argumentar de maneira diferente do que fazíamos trinta anos atrás. Naquela época ninguém queria ver como problemática a decolagem dos mercados financeiros. Nas ideologias atuais de processamento das crises, ao contrário, a supostamente boa e saudável “economia real” está sendo constantemente contraposta à “mórbida e inchada” esfera financeira. A acumulação progressiva de capital fictício, precária solução para a crise, é dessa maneira mistificada como causa da crise e, ao mesmo tempo, o capitalismo baseado no trabalho em massa é nostalgicamente transfigurado.[22]

     Nestas condições, se a crítica do valor ficasse denunciando a acumulação da indústria financeira como „aparente“, no estilo antigo, cairia ela mesma nas águas da ideologia dominante. À luz da teoria do „capitalismo inverso“, ao contrário, a idéia do retorno a um capitalismo saudável baseado no trabalho honesto é um mito. Essa teoria inclui uma crítica fundamental ao atual e predominante  processamento ideológico das crises.

Como descreveriam as formas ideológicas atuais de processamento da crise?

Norbert Trenkle: Um elemento central do processamento ideológico da crise desde a década de 2000, reforçado a partir do crash de 2008 é, como já mencionado, a referência nostálgica ao capitalismo supostamente bom da época fordista, baseado no trabalho industrial em massa. Ele é confrontado com o capital financeiro que aparece como a causa da crise e de todo mal. E é acompanhado por uma adoração do Estado forte e da Nação, que se colocariam contra a globalização. Esta é a base sobre a qual o nacionalismo e o neo-autoritarismo prosperam e estão em ascensão em quase todos os lugares do mundo. É claro que esses regimes autoritários não podem resolver a crise fundamental, porque o desenvolvimento capitalista não pode ser revertido para os tempos do fordismo e para uma política econômica voltada para o mercado interno. Mas isso não nos deve tranquilizar. Pois essa incapacidade estrutural é, por assim dizer, “compensada” por uma exclusão social e racista mais aguda e pela intensificação da repressão contra oponentes e críticos, como acontece atualmente na Hungria e na Polônia, ou mesmo na Turquia.

     Se esses regimes e movimentos encontram tanto apoio entre grandes setores da população, isso tem a ver essencialmente com o fato de que eles servem a uma determinada necessidade identitária, que se encontra na estrutura fundamental da subjetividade moderna. Com isso nos referimos à necessidade de identificação com um poderoso grande sujeito ou sujeito coletivo, como a Nação. Essa identificação possibilita compensar o onipresente sentimento de impotência que resulta, em última instância, do confronto das pessoas com suas próprias relações sociais no capitalismo, como um poder aparentemente estranho que as subjuga. Esse sentimento de impotência representa, portanto, uma constante básica da subjetividade capitalista, pois está ancorado na estrutura da sociedade da mercadoria; mas ele foi consideravelmente agravado pela extrema volatilidade, imprevisibilidade e propensão para a crise do capitalismo inverso. É por isso que mais e mais pessoas buscam hoje um amparo identitário em grandes sujeitos imaginários e desejam um “homem forte” – que em tempos de emancipação pode ser também uma „mulher forte“, como Marine Le Pen.

     Todavia, a identificação com um grande sujeito coletivo exige sempre uma demarcação agressiva em relação a um “outro” construído que é definido como estranho e hostil. Todo nacionalismo delimita-se em relação a outras nações. E porque supostamente a “essência própria” exprime-se sempre em um “caráter nacional” determinado e em uma cultura particular, outras pessoas são ao mesmo tempo definidas como “culturalmente estrangeiras” e “não-pertencentes”, por causa de sua cor de pele ou de sua origem.[23] Nesse sentido, o racismo está sempre inscrito no nacionalismo. É uma imagem espelhada do antissemitismo. Os “judeus” são imaginados como “sem raízes” e, portanto, considerados inimigos de todas as nações por excelência. De um ponto de vista antissemita, os judeus não estão supostamente por trás apenas da globalização e financeirização da economia, mas também dos processos de decomposição social e estatal em todo o mundo. Aliás, esta é uma figura ideológica que não é encontrada apenas na direita, mas também ronda a cabeça de muitos à esquerda. E o antissemitismo combina com inúmeras ideologias da conspiração que estão ganhando cada vez mais influência no processo de crise. Como as pessoas não compreendem a dinâmica capitalista, iludem-se no sentido de que os processos tenebrosos e objetivos aos quais estão expostos são orquestrados e controlados por determinados grupos poderosos.[24]

A crítica da subjetividade moderna apareceu inicialmente como um empreendimento quase “esotérico”, sem relação aparente com o capitalismo de crise global. Em 11 de setembro, no entanto, “o irracionalismo do sistema golpeou a si mesmo”. O que mudou com essa nova conjuntura e como ela afetou o desenvolvimento da teoria?

Norbert Trenkle: Os ataques de 11 de setembro de 2001 representam certamente uma ruptura histórica, quase tão significativa como o colapso do socialismo real, pois ela não só mudou as coordenadas da política mundial, mas também deslocou o discurso ideológico sobre a crise. Isso não poderia ficar sem consequências para a nossa elaboração teórica. No chamado Ocidente, o islamismo é quase universalmente apreendido como uma espécie de rebelião arcaica contra a modernidade, como um “retorno da Idade Média”. Em contraste, são convocados os “valores ocidentais” e as realizações do Iluminismo, que devem ser defendidos, se necessário, com bombardeiros de combate. Mas isso encobre deliberadamente que, em primeiro lugar, os “valores ocidentais” representam essencialmente a racionalidade e os imperativos da formação social capitalista e, portanto, de maneira alguma são tão brilhantes.[25] Em segundo lugar, se esconde que esse irracionalismo violento e autoritário é precisamente o avesso obscuro dessa racionalidade, que em tempos de crise e insegurança geral por todos lados, sai para a superfície e se torna cada vez mais forte.[26]

     Esse irracionalismo apresenta-se muitas vezes em vestimentas pseudo-arcaicas, embora ele seja essencialmente parte integral e indivisível da modernidade capitalista e tenha sido produzido por ela. Isto aplica-se, por exemplo, ao fascismo em geral e ao nazismo em particular, os quais foram caracterizados por narrativas históricas que tinham tanta veracidade quanto o conto de fadas do Chapeuzinho Vermelho. Essas narrativas podem se tornar a força motriz da mobilização histérica de massas porque elas fornecem o material para certas identidades coletivas que exercem uma tremenda atração em indivíduos modernos subjetivamente formatados. A arcaização não é um acaso, mas um princípio de construção básico. É justamente por ela que uma identidade coletiva como “a comunidade nacional alemã” promete às mônadas capitalistas uma sensação enganosa de segurança, pois aparece como uma constante supra-histórica. No oceano turbulento da vida cotidiana capitalista, com suas constantes mudanças e suas exigências permanentes de flexibilidade individual e auto-afirmação, ela põe-se como uma essência aparentemente original e imutável, e promete enquanto tal uma elevação transcendental, que só as religiões conseguiam mediar anteriormente. O nacionalismo, o fascismo, mas também o socialismo tradicional foram, portanto, com toda razão chamados de religiões seculares.

     Mas também o islamismo é um movimento identitário extremamente moderno, no mesmo sentido que o fascismo ou o nacionalismo. A indicação mais clara disso é aquilo que aparece como paradoxal à primeira vista: a particular veemência com a qual ele proclama o retorno radical ao „verdadeiro Islã“ e a seus alegados fundamentos. Aqui encontramos os padrões de construção das modernas identidades coletivas já mencionados, o apelo a tradições aparentemente antigas e normas consagradas e inquestionáveis. Mas o islamismo não tem nada a ver com a religião tradicional do Islã, como se mostra também no fato de que grupos como o Talibã ou o Estado Islâmico combatem precisamente manifestações tradicionais como o sufismo, de maneiras particularmente brutais, e até explodem antigos santuários islâmicos. Também aponta para seu caráter moderno a veemente afirmação de verdade que cada um dos fragmentados movimentos e agrupamentos islamistas reclama para si e militantemente defende contra todos os outros. Pois as identidades são essencialmente exclusivas. Elas são caracterizadas por fronteiras nítidas entre um interior e um exterior, o que é realizado pela construção de „outros“ essencialmente estranhos e fundamentalmente hostis. No nacionalismo, é claro, esses são os “outros povos” que ameaçam o “próprio povo” e disputam seu espaço vital. No islamismo, são precisamente os “cruzados” e os “infiéis”. Essa determinação do inimigo tem muito mais a ver com Carl Schmitt do que com o Alcorão.

     O islamismo – em todo o caso, o islamismo em suas manifestações violentas e terroristas – é em essência um movimento de modernização enlouquecido. Na fase de ascensão do capitalismo, a formação de identidades nacionais era ainda, em toda a sua violência, um momento no processo de estabelecimento das relações de produção e de vida da sociedade da mercadoria. No islamismo militante, a política identitária torna-se um momento de destruição acelerada daquelas mesmas relações, especialmente onde elas já se tornaram precárias. O islamismo é particularmente bem-sucedido ali onde as identidades estatais e nacionais já estão fracas ou se encontram em processo de decomposição, como no mundo árabe ou no Oriente Médio. Também é muito atraente para os imigrantes, ou seus filhos e netos, nos países ocidentais, onde eles são excluídos das narrativas nacionais dominantes e definidos como não-pertencentes. O islamismo oferece a eles precisamente o apoio coletivo identitário que uma parte de seus pares não-migrantes encontra em identidades nacionalistas ou grupos de direita.[27]

     É claro que isso praticamente não é discutido no discurso ocidental sobre o islamismo; pois uma tal discussão implicaria assumir o núcleo de violência da forma de sujeito burguesa e seu avesso irracional – o que deve ser evitado com todas as forças. Em vez disso, o islamismo serve como uma tela de projeção para tudo que o Ocidente não quer ver em si mesmo. Dessa forma, os conflitos imanentes da sociedade global da mercadoria, agravados no curso do processo de crise, podem ser etnicizados. É como se o „modelo de vida ocidental“ fosse ameaçado por um inimigo externo. Pode ser maravilhosamente recalcado, assim, o fato de que o modo capitalista de produção e de vida, que há muito tempo domina o mundo em toda parte, decompõe-se catastroficamente em suas próprias contradições internas.[28]

Nesse sentido, como pensam que o processo de crise se desenvolverá? Que papel terão essas formas de processamento ideológicas e subjetivas?

Ernst Lohoff: A questão do curso posterior da crise não pode ser respondida sem antes falar um pouco sobre o atual estágio de desenvolvimento do capitalismo inverso. A grande queda de 2008 não foi o primeiro grande revés sofrido pelo sistema de antecipação global de valor, mas foi de longe o mais crucial. Dois aspectos fornecem uma nova qualidade. Primeiro, diferentemente da crise do Leste Asiático de 1997/98, o crash de 2008 não afetou apenas uma região específica do mundo, mas todos os Estados capitalistas centrais. Em segundo lugar, ao contrário do crash das pontocom de 2000, não quebrou apenas um setor que servia como portador de esperança para a geração de capital fictício; em 2008 foi afetado o coração da superestrutura financeira: o sistema bancário. Portanto, pairou a ameaça do colapso total do sistema de antecipação de valor e, portanto, da economia mundial. Em face deste perigo, os governos e Bancos Centrais do mundo proclamaram, em uma ação concertada, o estado de emergência da política financeira e monetária – e o fizeram com absoluto sucesso.

     Através da estatização emergencial do capital fictício tóxico, da compra de títulos estatais pelos próprios Bancos Centrais e de uma política de taxas de juros negativas, eles não só evitaram o colapso da economia de bolha, mas criaram um clima de efeito estufa em que a geração de capital fictício  privado experimentou novamente um enorme impulso. Foi assim que a dinâmica econômica global começou a andar novamente. A despeito dos bancos centrais terem legitimado sua política monetária “não convencional” como uma medida emergencial de curto prazo, eles ainda temem, com razão, o fim da política de dinheiro ultra-barato. Mesmo que as bolsas de valores nos EUA, Europa e Ásia registrem regularmente novos recordes históricos, a dinâmica de geração de capital fictício do setor privado interno é até hoje muito instável para continuar sem o apoio contínuo por parte dos Bancos Centrais.

     Com a crise de 2008, surgiu então um sistema de parceria público-privada, no qual toda a política monetária se volta para a manutenção da criação  de novo capital fictício privado. De certa forma, o „capitalismo inverso“ alcança assim o estágio de desenvolvimento que tinha atingido na década de 1970 o capitalismo clássico, quando o fraco crescimento foi compensado pelo desesperado deficit spending keynesiano. Ao mesmo tempo, no entanto, isso é uma indicação de que essa forma de adiamento da crise está cada vez mais próximo dos seus limites. É totalmente claro que também as bolhas atuais, criadas sobretudo através do apoio ativo da política monetária, mais cedo ou mais tarde irão estourar. Ainda que não se possa prever com precisão quando isso irá acontecer, há muito tempo se aguarda um crash especialmente no setor imobiliário chinês.

     Além disso, agora não são apenas as contradições econômicas internas que tendem a explodir, mas o perigo ameaça também desde a política. Por trinta anos, os governos dos Estados capitalistas centrais criaram, através de suas políticas econômicas, condições gerais propícias para a acumulação transnacional de capital carregada pela dinâmica do capital fictício. Surgiu uma nova divisão internacional do trabalho que mantém a economia mundial até hoje. Ela consiste em que países como os EUA e a Grã-Bretanha jogam permanentemente capital fictício no mercado mundial e acumulam cada vez mais dívidas, permitindo que outros países, especialmente a China e a Alemanha, tenham sucesso nos mercados de bens e consigam excedentes de exportação. Mas, enquanto isso, em alguns Estados capitalistas centrais, as forças políticas estão questionando esse singular ordenamento e querem desmontar o quadro geral da acumulação global. Pois as reações político-identitárias ao processo de crise e a insegurança social gerada por ele refletem-se também, cada vez mais, na formação de governos. A eleição de Donald Trump foi, nesse sentido, o tiro de largada. E o fato de no Brasil ser eleito um extremista de direita, enquanto realizamos essa entrevista, não é menos que uma catástrofe.

     Em todos os lugares movimentos e partidos nacionalistas, de direita ou de esquerda, estão em ascensão. Todos eles procuram um desacoplamento nacional pelo menos parcial em relação ao mercado mundial, aos mercados financeiros internacionais e às organizações supranacionais como a UE, prometendo recuperar para os „seus“ países um maior espaço político de manobra. Claro que isso é pura ilusão. O que deveria dar vantagens à „própria nação“ em detrimento de outras acaba exacerbando a crise interna e externa. Isso já é previsível no fato de que a saída do Reino Unido da UE, que ameaça separar o centro financeiro de Londres da Europa continental, terá um efeito devastador na situação econômica desse coração do neoliberalismo. O efeito retroativo na UE, por outro lado, deve permanecer limitado. A situação é diferente com as conseqüências da política norte-americana. Se a administração Trump levar a sério as restrições às importações que ela vem anunciando, quebrará com isso o volante da economia mundial. Há algo de suicida nos EUA declarando guerra econômica a um país, a China, que detém um terço dos seus títulos estatais. Tal procedimento castigaria inevitavelmente os mercados financeiros e, portanto, também a „economia real“, e levaria os EUA à falência.

     Na crise de 2008, a intervenção conjunta, pragmática e maciça de governos e Bancos Centrais evitou o enorme surto de desvalorização. Na próxima rodada da crise, a política deve aprofundar a crise ainda mais. Se os governos dos Estados capitalistas centrais buscam atender as necessidades identitárias de seu eleitorado, seguindo assim um cálculo extremamente particular, isso ameaça colocar em movimento uma dinâmica que trará como resultado o colapso catastrófico da economia mundial.[29]

Norbert Trenkle: Estamos experimentando a esse respeito mais um salto qualitativo no processo de crise. A política já não está apenas em crise, como diagnosticamos há tempos, mas tem-se tornado ela mesma um momento integral e dinâmico de crise. Isto aplica-se não só ao processo de crise econômica em sentido estrito, mas também   à própria esfera da política. A nova política de identidade marca a transição para uma violenta e provavelmente definitiva liquidação dos elementos liberal-democratas no Estado. Mas isso não dá lugar a ditaduras clássicas à la Pinochet ou a sistemas fascistas à la Mussolini, e sim a regimes autoritários brutais que se misturam com gangues mafiosas e com forças fundamentalistas regressivas e impulsionam a desintegração violenta da sociedade. Nos dirigimos, então, a tempos sombrios. As forças de esquerda encontram-se em boa medida impotentes diante desse desenvolvimento, pois orientam-se basicamente por conceitos do passado, e não questionam fundamentalmente nem a produção de mercadorias, nem o Estado. Para sair da defensiva é preciso uma nova perspectiva de emancipação social.[30] Nós pensamos que a crítica do valor deve desempenhar um papel importante nesse sentido.

[1] As notas de rodapé contêm referências a textos sobre as perguntas da entrevista em alemão e português.

[2]  Editorial Krisis 8/9, Erlangen  1990.

[3] Johanna W. Stahlmann: Die Quadratur des Kreises, in Krisis 8/9, Erlangen 1990;
Robert Kurz: Der Kollaps der Modernisierung, Frankfurt/M. 1991; O colapso da modernização, São Paulo 1993.

[4] Robert Kurz: Abstrakte Arbeit Sozialismus, in Marxistische Kritik 4, Erlangen 1987;
Robert Kurz / Ernst Lohoff: Der Klassenkampffetisch, in: Marxistische Kritik 7, Erlangen 1989

[5] Peter Klein: Demokratie und Sozialismus, in: Krisis 7, Erlangen 1989.

[6] Peter Klein: Moderne Demokratie und Arbeiterbewegung Teil I, Teil 2, Teil 3.1 und Teil 3.2. in: Marxistische Kritik 3, 4, 5 und 5, Erlangen 1987 – 1989.

[7] Robert Kurz: Die Krise des Tauschwerts, Marxistische Kritik 1, Erlangen 1986; A crise do valor de troca. Consequência Editora, Rio de Janeiro, 2018.

Ernst Lohoff: Die Inflationierung der Krise, in: Krisis 8/9, Erlangen 1990

[8] Ernst Lohoff: Das Ende des Proletariats als Anfang der Revolution, in: Krisis 10, Erlangen 1991.

[9] Robert Kurz: Die verlorene Ehre der Arbeit, in: Krisis 10, Erlangen 1991; A honra perdida do trabalho, Antigona, Lisboa, 2018.

Ernst Lohoff: Arbeitsterror und Arbeitskritik, in: Ernst Lohoff u.a. (Hg.): Dead Men Working, Münster, 2004.

[10] Christian Höner: Zur Kritik von Dialektik, Geschichtsteleologie und Fortschrittsglaube, in: Krisis 28, Münster 2004

[11] Norbert Trenkle: Was ist der Wert? Was soll die Krise?, in: Streifzüge 3/ 1998, Wien.

Karl-Heinz Lewed, Rekonstruktion oder Dekonstruktion? Über die Versuche von Backhaus und der Monetären Werttheorie, den Wertbegriff zu rekonstruieren (Krisis 3/2016).

[12] Ernst Lohoff: Das Ende des Proletariats als Anfang der Revolution, in: Krisis 10, Erlangen 1991.
Robert Kurz: Postmarxismus und Arbeitsfetisch. In: Krisis 15, Bad Honnef 1995.

[13] Roswitha Scholz: Der Wert ist der Mann, in: Krisis 12, Bad Honnef 1992

O valor é o homem, in: Novos Estudos – Cebrap, n. 45, jul. 1996.

[14] Karl-Heinz Lewed: Schopenhauer on the rocks, in: Krisis 29, Münster 2005
Ernst Lohoff: Die Verzauberung der Welt, in: Krisis 29, Münster 2005
Karl-Heinz Lewed: Erweckungserlebnis als letzter Schrei, in: Krisis 33, Münster 2010
Norbert Trenkle: Aufstieg und Fall des Arbeitsmanns, in Exner, Andreas et.al. (Hg.): Grundeinkommen, Wien 2007.

Norbert Trenkle: Ascensão e queda do homem trabalhador

[15] Zur Kritik dieser Vorstellung: Ernst Lohoff: Der Wert des Wissens, in: Krisis 31, Münster 2007.

[16] Ernst Lohoff: Große Fluchten, Wien 2000.

Ernst Lohof: Fugas para frente
Norbert Trenkle: Weltmarktbeben, 2008
Ernst Lohoff: Auf Selbstzerstörung programmiert, Krisis 2/ 2013.

[17] Gruppe Krisis: Manifest gegen die Arbeit, Nürnberg 1999

Grupo Krisis: Manifesto contra o trabalho [Nova edição], Krisis Ed., Rio de Janeiro, 2020.

[18] Moishe Postone: Zeit, Arbeit und gesellschaftliche Herrschaft, Freiburg 2003, S. 224 ff; Postone, Moishe, Time, Labour, and Social Domination. A Reinterpretation of Marx’s Critical Theory, Cambridge: Cambridge University Press, 1993.

[19] Ernst Lohoff/ Norbert Trenkle: Die große Entwertung, Münster 2012.

Ernst Lohoff/ Norbert Trenkle: Interview zu „Die große Entwertung“, Teil 1Teil 2Teil 3

Entrevista sobre o livro: Crise mundial e limites do capital, Sinal de Menos 9, Sao Paulo

[20] Ernst Lohoff, Zwei Bücher – zwei Standpunkte, krisis.org 2017

Ernst Lohoff, Dois livros – dois pontos de vista, krisis.org 2017

[21] Ernst Lohoff: Kapitalakkumulation ohne Wertakkumulation, Krisis 1/ 2014

[22] Norbert Trenkle: Vorwärts in die Regression, in: Merlin Wolf (Hg): Irrwege der Kapitalismuskritik, Aschaffenburg 2017

[23] Ernst Lohoff: Der Tod des sterblichen Gottes, in: Krisis 19, Bad Honnef 1997

[24] Moishe Postone: Nationalsozialismus und Antisemitismus, in Dan Diner (Hg.): Zivilisationsbruch, Frankfurt/ M. 1988.
Ernst Lohoff: Geldkritik und Antisemitismus, in: Streifzüge 1/ 1998

[25] Karl-Heinz Lewed: Von Menschen und Schafen, in: Krisis 28, Münster 2004.

Norbert Trenkle: Kulturkampf der Aufklärung, Krisis 32, Münster 2008

[26] Ernst Lohoff: Gewaltordnung und Vernichtungslogik, in: Krisis 27, Bad Honnef 2003

Ernst Lohoff: Ohne festen Punkt, in: Krisis 30, Münster 2006.

[27] Karl-Heinz Lewed: Finale des Universalismus, in: Krisis 32, Münster 2008

Karl-Heinz Lewed: O grandioso final do universalismo, Sinal de Menos 12, São Paulo, 2016.
Ernst Lohoff: Die Exhumierung Gottes, in: Krisis 32, Münster 2008

Ernst Lohoff: Gott kriegt die Krise, in: Jungle World vom 27.9.2006

Ernst Lohoff: Deus acolhe a crise, Sinal de Menos 12, Sao Paulo, 2016.

[28] Norbert Trenkle: Gottverdammt modern, krisis.org 2015

Norbert Trenkle: Desgraçadamente moderno, Sinal de Menos 12, São Paulo, 2016.

[29] Ernst Lohoff: Die letzten Tage des Weltkapitals, Krisis 5/2016

[30] Norbert Trenkle: Gesellschaftliche Emanzipation in Zeiten der Krise, in: Widerspruch. Münchner Zeitschrift für Philosophie, Nr 61/ 2015

Ernst Lohoff:Out of Order – Out of Control, in: Streifzüge 31/2004 und 32/2004

Norbert Trenkle: Antipolitik in Zeiten kapitalistischen Amoklaufs, in: Ernst Lohoff u.a. (Hg.): Dead Men Working, Münster 2004; Anti-política em tempos de fúria homicida capitalista, Krisis.org.

Norbert Trenkle: Uma questão de lógica capitalista

Uma entrevista de Joachim Wille com Norbert Trenkle [Grupo Krisis]


O economista Norbert Trenkle fala sobre o fim do trabalho numa entrevista com o Frankfurter Rundschau – 01/05/2015.

O senhor previu o “fim do trabalho”. O que é que significa isso?

NT: Deveríamos falar, antes, de uma crise do trabalho, realmente uma crise fundamental que avança de modo altamente contraditório. De um lado, cada vez mais trabalho é racionalizado por causa da alta produtividade; de outro lado, a maioria das pessoas continua a depender da venda da sua força de trabalho para viver. Isso aumenta o fosso entre a oferta e a procura no mercado de trabalho e reforça a pressão para que as pessoas se ofereçam sempre em condições pioradas.

Robôs em vez de empregos mais adequados – isso é um horror ou um paraíso?

NT: Isso depende. Em condições capitalistas, o desenvolvimento tecnológico significa uma tendência de as pessoas se tornarem supérfluas para a produção de mercadorias, restando-lhes apenas a escolha entre desemprego ou trabalho precário. Numa sociedade liberta, por outro lado, a alta produtividade poderia ser usada para permitir uma boa vida a todas as pessoas e para produzir de um modo adequado em termos ecológicos.

Nos últimos anos experimentamos uma disparidade crescente na sociedade, incluindo a vida profissional. Há quem lucre bem com o sistema, e outros que, no pior dos casos, já não tem mais utilidade. Quais são as razões para isso?


NT: Isso porque a dinâmica capitalista atual não se baseia mais no trabalho em massa na indústria, mas deslocou o seu foco para os mercados financeiros e para os setores de produção e aplicação do conhecimento. Quem trabalha aqui também está sujeitos à pressão permanente por mais desempenho, mas pelo menos são bem pagos por isso. A massa dos demais vendedores de força de trabalho, por outro lado, tem de lutar por empregos que não são necessariamente “relevantes para o sistema”. Quer sejam vendedores ou entregadores de encomendas, são obrigados a trabalhar à exaustão, caso contrário já não conseguem pagar as contas.

O salário mínimo ajuda?

NT: O salário mínimo freia até certo ponto essa superexploração. Mas está se tornando evidente que ele está sendo contornado em larga escala. E como a pressão da concorrência é particularmente grande no setor precário, muitas das pessoas afetadas não se defendem.


Ou seria melhor uma renda básica sem restrições?

NT: Isso poderia levar a um alívio da obrigação geral de trabalhar, desde que seja realmente suficiente para viver. Nesse caso, também abriria espaço para a luta por alternativas sociais.

O horário de trabalho semanal deve ser reduzido? Nos sábados, terças e quintas-feiras os pais ficam com os filhos?

NT: Claro. Seria absolutamente correto converter os enormes efeitos da racionalização em tempo disponível para todos. Mas, em última análise, isso exigiria uma ruptura com a lógica capitalista, pois é ela que empurra na direção oposta, para o prolongamento dos horários de trabalho e para o trabalho mais intensivo.

O que poderia tomar o lugar do trabalho caso ele não fosse mais necessário?

NT: O trabalho não decai gradualmente, mas, de modo paradoxal, na sua crise aumenta a pressão que ele exerce sobre a sociedade. É por isso que são necessários movimentos sociais para questionar a coerção de ter de sobreviver diariamente da venda da força de trabalho. Somente dessa forma pode-se abrir caminho para atividades sociais livres, sem coerção externa.

Seriam mais felizes as pessoas que tem liberdade para colher a salada na horta pela manhã, cuidar das crianças à tarde, escrever textos à noite, sem que se tornem agricultores, professores ou escritores?

NT: As pessoas certamente ficariam mais felizes se pudessem decidir de livre acordo com os outros o que fazer e como fazer. Isto, naturalmente, inclui também a possibilidade de passar de uma atividade para outra. Não significa, no entanto, que todos nós temos de nos tornar criativos. Essa seria novamente uma fantasia da mania de desempenho capitalista. Liberdade também pode significar limitar-se a umas poucas atividades ou mesmo não fazer nada algum dia, se eu quiser. Mas isso também não deveria ser a norma, tal como o seu oposto.

Anselm Jappe: A comunidade dos democratas na Itália

(2000)

Nos países capitalistas avançados, a Itália é muitas vezes vista em segundo plano relativamente aos países do norte da Europa, e geralmente é dessa forma que ela mesma se vê. Esse pode muito bem ser o caso quando se trata dos serviços sociais do Estado ou da sua eficiência, ou seja, do “bem-estar dos cidadãos”, que se supõe o objetivo da unificação europeia. No entanto, quando se trata dos aspectos menos elevados, mas talvez mais centrais, da construção da Europa moderna, a Itália teve muitas vezes até uma função pioneira e sempre foi um laboratório para o desenvolvimento de novas técnicas de dominação: seja a unificação nacional de 1860/61, dez anos antes da Alemanha, pela conquista de um Estado federado, seja a invenção do fascismo, seja o entrelaçamento entre máfia e aparelho estatal, além do uso do terrorismo para impedir protestos em massa que já não podiam ser canalizados pelas vias tradicionais. O desenvolvimento de novos métodos de produção descentralizados, baseados em pequenas empresas flexíveis, também teve início na Itália – no final dos anos 1970 – antes do que em qualquer outro lugar.

     A partir de 1992, a Itália parece estar novamente na vanguarda da transição para uma nova fase, que também começava a aparecer em outros países.

     A série de investigações judiciais conhecida como Mani pulite (mãos limpas) indiciou a maior parte dos que haviam governado até então e derrubou o sistema político que existia desde 1948. Na chamada “Primeira República”, a Democracia Cristã governou com partidos menores do centro político, como parceiros de coalizão, especialmente os socialistas, enquanto o Partido Comunista estava oficialmente na oposição, ainda que tenha se envolvido de fato em todas as decisões importantes, sobretudo durante o “estado de emergência nacional” na época do “terrorismo”, por volta de 1978. Em 1993, a Democracia Cristã se dissolveu em vários partidos, enquanto todos os demais desapareceram ou se renomearam (e, de modo significativo, sempre aboliram o termo “partido”). Com Ciampi, o chefe do banco central externo ao sistema partidário, pela primeira vez uma pessoa que podia ser apresentada em toda parte tornou-se o primeiro-ministro. Não é preciso ser especialmente perspicaz para supor que a tentativa de forçar a saída do palco de uma casta corrupta de políticos que só tentavam se preservar, correspondia não tanto a um súbito impulso do judiciário, nem a um clamor moral da população, mas ao interesse dos chamados “poderes fortes”[1], que não queriam perder o contato com a integração europeia e, portanto, apostaram na modernização das estruturas (enquanto no norte da Itália a pequena e média burguesia organizadas na Lega Nord pensavam que só poderiam dar o salto rumo à Europa por conta própria, sem o resto da Itália). A partir da política, a onda de renovação varreu a sociedade: embora de modo algum houvesse exigências subversivas, o desejo geral de legalidade e a exigência de que as estruturas públicas não deveriam mais servir apenas à auto-reprodução de uma oligarquia pareciam pôr em causa os fundamentos do modelo especificamente italiano, que existe há décadas, em favor de um modelo “mais moderno” ou “mais europeu”. De fato, falou-se até em uma “revolução italiana” pacífica.

     Mas era tudo ilusão. A Itália deve os seus “êxitos” – afinal, ascendeu à quinta ou sexta nação industrial do mundo – precisamente a essa combinação de traços arcaicos e modernos e à grande flexibilidade que resulta deles. Sua transformação em um país onde tudo é feito de acordo com a lei seria tão contraproducente do ponto de vista do sistema quanto a insistência dos “empregados” japoneses sobre o que, em teoria, são os seus direitos. Depois do ano extremamente turbulento de 1993, ocorreu uma mudança radical em 1994 com a entrada de Berlusconi, o czar da mídia, na política. A vitória eleitoral de sua Forza Italia, fundada poucas semanas antes das eleições, a formação de um governo junto com a Lega Nord e a Alleanza nazionale – a primeira vez na história do pós-guerra europeu em que um partido xenófobo originado do fascismo participa do governo – assim como o início de sua atividade governamental, colocaram subitamente o foco da atenção internacional na política interna italiana, que já não interessava a ninguém. Aqui as “democracias ocidentais” pareciam ver o seu próprio futuro[2]: um sistema autoritário velado no qual um magnata da indústria, que aparece como um tipo de amalgama de messias e popstar, sempre tem a opinião pública em suas mãos graças aos próprios canais de televisão e governa por meio de referendos e pesquisas de opinião, desviando-se em grande medida do parlamento e de todas as instituições tradicionais. A Forza Italia não era um partido, mas consistia nos diretores regionais das empresas de Berlusconi; em vez de grupos locais, havia os “Clubes Forza Italia”, e não havia convenções partidárias nem eleições internas. O ultraliberalismo, a tentativa de anistia para os políticos incriminados, a legalização de todas as habitações construídas ilegalmente, o direito de caça nos parques nacionais, a redução das pensões foram suas principais ações. Ao mesmo tempo, houve uma personalização da política, antes desconhecida na Itália, e líderes “carismáticos” e televisivos apareceram não só à direita (Berlusconi, Fini), mas também na “extrema” esquerda, na figura do presidente da Rifondazione comunista, Fausto Bertinotti. Aqueles que consideravam a democracia burguesa “clássica” uma grande conquista finalmente tiveram novamente um inimigo contra o qual poderiam defendê-la.

     O que resta dela hoje? À primeira vista, não muito. O golpe televisivo de 1994 e a tentativa do governo Berlusconi de derrubar as regras tradicionais da política italiana, baseadas no melhor equilíbrio de pesos, finalmente fracassaram devido à táctica superior de desmoralização por parte dos seus adversários em uma ampla frente. A lei italiana fundamental, “mudar tudo para que nada mude”, virava-se então contra a direita, e a inércia descomunal do sistema político, novamente, parecia ter vencido. Berlusconi tornou-se gradualmente um político normal na sucessão dos democratas cristãos, e um político bastante desajeitado, mantido vivo sobretudo pela esquerda, para a qual ele é o oponente ideal. As comparações feitas outrora entre Berlusconi e Jirinóvski, Haider ou figuras semelhantes parecem hoje bastante inadequadas. Mas ele não pode ser detido, para o espanto de seus inimigos e supostos companheiros, e a Forza Italia sai intacta de todas as eleições. Também a integração permanente dos pós-fascistas no governo, que causou os piores temores em toda Europa, não ocorreu: não só renunciaram rapidamente aos cargos ministeriais, como também se tornaram um partido liberal-conservador na tradição “gaullista” de uma forma muito mais convincente do que é admitido pela a esquerda tradicional.[3]

     A “comunidade dos democratas” também se impôs aqui, na medida em que a política midiática pós-moderna de Berlusconi teve de ceder à política tradicional dos corredores. O sucesso de Berlusconi, no entanto, não se deveu aos seus canais de televisão, como seus adversários querem nos fazer acreditar. Pois se estes aparecessem o tempo inteiro na tela, não teriam o mesmo sucesso popular que ele. O público o amava e o ama, e tal como figuras similares, gosta dele precisamente por causa do seu lado feio, que serve para muitas pessoas como figura de identificação (“Também eu gostaria de ser esperto”) e como pretexto para a sua própria desonestidade. Seja como for, seus problemas com a justiça não produziram nos seus fãs qualquer abandono da lealdade, pelo contrário.[4] Finalmente, seu sucesso não foi tão sensacional como parecia, mas ele assumiu as estruturas tradicionais de clientela dos democratas cristãos e socialistas de Bettino Craxi. Para poder continuar no jogo, no entanto, teve de renunciar ao extremismo e, apesar de recaídas e fracassos ocasionais, precisou se adaptar aos outros democratas. Isso se aplica tanto ao conteúdo quanto à forma: suas sugestões para introduzir novos métodos, como uma grande carreata em frente ao palácio presidencial, foram ridicularizadas mesmo entre os seus aliados e não se repetiram. Para o azar dos democratas honestos, até Berlusconi se tornou um deles.

     A comunidade dos democratas, no entanto, não só deteve o balanço do pêndulo à direita, como também à esquerda, ou para a “democracia” no sentido enfático. Os operadores da Mani pulite estão há muito tempo no banco dos réus (até agora no político). Em outubro de 1999, Andreotti, figura-chave da política italiana há mais de trinta anos, foi absolvido da acusação de instigar o assassinato de um jornalista e de ter mantido contatos estreitos com a máfia. O significado simbólico dessas absolvições não pode ser subestimado e, finalmente, incentiva novamente todos os vereadores a conceder contratos públicos apenas em troca de “presentinhos”, cada gerente de escritório a assediar seus empregados, cada motorista a estacionar na calçada. Há dois anos, quando dois desses julgamentos começaram, tal resultado ainda parecia impossível.[5] Mas, na realidade, era de se esperar. O sistema político italiano pode superar o fato, confirmado por todos os tribunais, de que, durante vários anos o poder ficou entregue a um corrupto comum chamado Craxi. Era difícil admitir, porém, que um assassino esteve no governo por trinta anos. Poucos dias depois da absolvição de Andreotti, falou-se mais do que nunca de uma anistia para Craxi, que fugira para a Tunísia, e Berlusconi obteve absolvições em dois dos seus julgamentos. O jogo parece ter virado completamente; fala-se em “restauração”, e de repente quase todos pensam que a Mani pulite foi apenas uma intriga política. Também aqui prevaleceu a comunidade dos democratas.

     Mas também isso ocorreu noutra área menos reconhecida. Não só os herdeiros dos fascistas e do grande capital provaram sua afiliação à família democrática, mas também a sua alegada antítese, os stalinistas.[6] É em si mesmo notável que, no final de 1998, com a eleição de D’Alema como primeiro-ministro devido a uma intriga parlamentar clássica, não só pela primeira vez na história italiana governa um “socialdemocrata”[7], mas sobretudo pela primeira vez a Europa Ocidental é governada por um ex-“comunista” ou stalinista. D’Alema não foi apenas um dos líderes do Partido Comunista (PCI) quando, em 1991, este mudou seu nome para Partido da Esquerda Democrática (PDS); ele já era presidente da Organização da Juventude Comunista FGCI em 1968, quando ainda pesava exatamente o quanto era permitido criticar a União Soviética e a invasão de Praga. Uma editora, a Edizioni Kaos, fez de fato chacota ao recolher em livro todas as declarações de D’Alema daquela época, que hoje provavelmente lhe são bastante desagradáveis. Quando o “ortodoxo” D’Alema foi eleito presidente do PDS em 1994 contra o “clintoniano” Veltroni, muitos jornais escreveram que o partido tinha voltado ao stalinismo após a era da reforma de Occhetto. Cinco anos depois, ele compete com Schröder e Blair em cortes e bombas.

     E, no entanto, D’Alema não é certamente um “renegado” no sentido de Fischer. O PCI é um modelo de como os “comunistas”, mesmo quando eram stalinistas impecáveis, nunca se viram como algo além de um aparelho substituto para a administração da sociedade da mercadoria. Insignificante durante sua existência ilegal sob o fascismo, desde 1944 o PCI sempre foi o segundo partido mais forte da Itália e o maior partido comunista na Europa Ocidental. Foi também o mais reformista, e paralelamente manteve uma fidelidade absoluta à União Soviética. Na Constituinte de 1947, votou a favor da Concordata que concedia ao Vaticano enormes privilégios que os socialistas e o centro burguês haviam rejeitado. Como recompensa, o PCI foi quase imediatamente expulso do governo, e a Igreja também ficou muito agradecida: alguns anos depois, excomungou todos os comunistas. Esse pequeno jogo se repetiria muitas vezes: embora nas classes dominantes a facção – apoiada pelos EUA – que considerava inútil fazer quaisquer concessões importantes aos comunistas sempre tenha vencido, estes últimos cumpriram fiel e diligentemente sua função de manter o potencial de conflito social sob controle – nos motins de 1948 e 1960, bem como nos subversivos anos 1970. A figura sombria de Palmiro Togliatti, presidente do PCI de 1927 a 1964, foi um exemplo dessa comunidade democrática. Como vice-secretário do Comintern, era um agente incondicional de Stalin. Na Guerra Civil Espanhola, sob o nome de Ercoli, assumiu a responsabilidade principal pela política stalinista, que sabotou a frente republicana por todos os meios, incluindo o assassinato. Mas também, durante as ondas de depuração na URSS, ele teria sabido muito sobre o assassinato dos comunistas húngaros e polacos ali exilados, como Bela Kun, que ocorreram na mesma época. Mesmo assim, esse homem de confiança foi um dos representantes mais convictos da participação dos comunistas na “democracia” italiana. Assim que voltou para a Itália na primavera de 1944, que tinha sido parcialmente arrancada aos alemães pelos Aliados, anunciou essa nova política na chamada “virada de Salerno” (conforme o nome de uma cidade nas imediações de Nápoles). Em um discurso aos funcionários do partido napolitano em 11 de abril de 1944, ele orgulhosamente proclama sua identificação com todos os “valores nacionais” e apresenta os comunistas como seus melhores representantes em comparação com os capitalistas e fascistas: “Eu desafio […] a encontrar uma única ação do nosso partido que contrariasse ou prejudicasse os interesses da Nação […] Antinacional tem sido a destruição das liberdades constitucionais que o povo conquistou em décadas de luta. De fato, permitiu que os grupos mais gananciosos e egoístas da sociedade italiana sacrificassem os interesses da Nação aos interesses exclusivos da sua casta”.[8] Ele se sente completamente amparado em Marx: “Estamos alinhados com o ensinamento e a tradição de Marx e Engels, que em nenhum momento negaram os interesses da sua nação e sempre os defenderam, tanto contra o invasor estrangeiro e usurpador quanto contra os grupos reacionários empoeirados”.[9] Os comunistas são melhores até mesmo no militarismo: Togliatti acusa os fascistas de terem encontrado ao tomar o poder em 1922 um exército que ganhara uma guerra e de terem “nos” deixado um exército derrotado, humilhado e desintegrado.[10] A classe é assim prontamente substituída por Togliatti pela comunidade nacional: em vista da miséria geral e da guerra em andamento “quase se diria que todos se sentem mais ou menos como proletários”.[11] Apenas os “grupos gananciosos e egoístas da plutocracia”[12] e os nazistas são inimigos, de resto, prega-se a trégua: o PCI quer “que todos os italianos, independentemente das diferenças de opinião política, crenças religiosas ou filiação a esta ou aquela categoria social, se unam para libertar o país da invasão estrangeira e da traição fascista”.[13] Claro que não há uma palavra sobre a revolução: “Eu sei, camaradas, que hoje os operários italianos não estão diante do problema de fazer o que foi feito na Rússia”[14], mas da participação na reconstrução da sociedade burguesa: “Como Partido Comunista, como partido da classe operária, estamos exigindo decididamente nosso direito de participar da construção da nova Itália”.[15] A única coisa importante, claro, é a “democracia”: “A nossa política deve tornar possível reunir em um bloco todas as forças antifascistas e democráticas, todas as verdadeiras forças nacionais” para criar um “regime democrático real e estável”.[16] Como democrata considera-se simplesmente qualquer não-fascista. Às acusações de que o PCI renunciou à revolução, ele responde reportando-se ao “senso de responsabilidade”.[17]

     Mas as tropas de Hitler ainda ocupavam metade da Itália. Se Togliatti diz: “um país que precisa fazer a guerra para se libertar da invasão estrangeira não pode exaurir suas forças em conflitos e insultos internos; deve ser forte para poder enfrentar todos os seus inimigos nos campos de batalha e no interior”[18], e assim exige “que seja criada em nosso país uma atmosfera de guerra e disciplina nacional rigorosa”[19], isso pode soar justificado naquela constelação histórica. Basta, no entanto, substituir a palavra “guerra” por “concorrência no mercado mundial” ou algo semelhante, para que essa frase seja também atual e assuma um significado diferente. Para os democratas há sempre algo em comum a ser salvo e, guerra à parte, não é muito diferente do que ocorre hoje: o PCI quer “atender os interesses elementares dos operários e, antes de tudo, acelerar a retomada de uma atividade industrial mais ou menos normal”.[20] Ebert já havia dito que o socialismo significa acima de tudo trabalhar muito. É duvidoso se os operários italianos assim o vejam, e Togliatti em verdade declarou: “Nossa política, talvez mais do que todas as outras, absorveu algo dos estratos médios intelectuais”.[21] O PCI quer defender “a liberdade para desenvolver a pequena e média propriedade”[22] , e a política por ele apresentada “é a única que permite um rápido renascimento da economia graças a um desenvolvimento permanente do nível de existência dos operários e camponeses, e à supressão de todas as formas de parasitismo econômico e social. Permitirá à Itália novamente se levantar e dando ao povo a paz, a calma e a prosperidade”, um programa verdadeiramente revolucionário.

     Em caso contrário, Togliatti foi absolutamente profético: “encarando concretamente a participação no governo, ou seja, o número e a importância dos ministérios, este não é um elemento decisivo para nós.[23] O decisivo é que “seja formado um governo de guerra democrático forte e respeitado”, e de fato o PCI teve que se contentar durante cinquenta anos com seu papel de mouro[24], que, caso cumprisse seu dever, poderia sair. “Toda a depuração [da administração pública pelos fascistas, AJ] deve estar subordinada às necessidades da guerra”,[25] disse Togliatti e, em 1946, como Ministro da Justiça de fato proclamou uma anistia para os fascistas que outras forças políticas não se atreveram a fazer cumprir. Tudo isto parece muito distante hoje em dia e parece servir apenas para confirmar mais uma vez como os stalinistas eram patifes. Mas os netos de Togliatti seguem agindo e retornam sem esforço ao seio da família democrática, de fato sem qualquer abjuração. É claro que o PDS tem agora vergonha de Togliatti e foi abolido o cabeçalho “fundado por Togliatti”, que por décadas esteve à frente do jornal do partido L’Unità, tal como na Rússia de Stalin os stalinistas caídos em desgraça desapareceram de todas as fotos. Na cisão de esquerda Rifondazione comunista, que existe desde 1991 (e recebeu cerca de 8% dos votos), uma esquerda mais radical vivia com uma ala de movimento composta por pessoas que não tinham aprovado a separação entre o PCI e a URSS nos anos 1970 e que continuavam a ver em Brezhnev o representante de um paraíso operário-camponês. Essa ala se separou no final de 1998, formando seu próprio partido, o “Comunisti italiani”, para entrar no novo governo D’Alema. Lá eles vivem pacificamente com os herdeiros de Craxi e com o antigo presidente Cossiga, de quem se pode dizer que, em 1978, foi pelo menos indulgente com o sequestro e assassinato de Aldo Moro, porque serviu para afastar os comunistas da esfera do poder. A ralé não briga por muito tempo. Afinal de contas, durante a Guerra do Kosovo os “comunistas italianos” ameaçaram corajosamente todos os dias deixar o governo caso a Itália não cessasse sua participação nos bombardeios.

     Mas mesmo aqui, o público foi avisado. Um dos líderes dos “comunistas italianos”, o jovem professor de direito Oliviero Diliberto, havia escrito uma defesa entusiástica de seu mestre na revista do partido Rifondazione, algumas semanas antes de ingressar no governo D’Alema na função que antes foi de Togliatti, ou seja, como ministro da Justiça (e que, em contraste com o seu antecessor “burguês”, ele exerce desde então para a completa satisfação de Berlusconi).[26] Ele acha exemplar que Togliatti tenha exigido na época que “a classe operária abandonasse a antiga posição de pura oposição e crítica para, ela mesma, assumir uma função de liderança ao lado das outras forças firmemente democráticas”[27] e que o Partido Comunista e as “massas” “assumam a bandeira da defesa dos interesses nacionais traídos pelo fascismo e pelos grupos que o levaram ao poder”.[28] Não por acaso, Diliberto considera muito atual a exigência de Togliatti de que “a classe operária e seu partido possam se apresentar como um governo melhor, mais competente e mais convincente do que as velhas lideranças”.[29] Também o seu escudeiro, o antigo historiador Luciano Canfora, não erra quando vê em Togliatti o grande democrata: enquanto na década de 1930, “os intelectuais democráticos concluem a partir do fascismo que a democracia parlamentar é de agora em diante uma experiência encerrada, das fileiras do movimento comunista surge a preocupação de reviver a experiência democrática”.[30] Por isso, elogia o propósito de Togliatti de retomar a “experiência de frente popular” da Guerra Civil Espanhola – à qual já mencionamos em que consistia. Naturalmente, a crença na democracia anda de mãos dadas com a crença no Estado: Canfora concorda com a afirmação de Togliatti, em 1963, de que o Estado não era essencialmente burguês, mas poder-se-ia usá-lo contra os grandes grupos monopolistas. Ele disse que não haveria problema para eles.[31] Que façam bom proveito.

     O desenvolvimento na Itália ainda está em pleno andamento, mais do que em outros países europeus. Mas uma coisa pode ser dita com certeza: ao contrário do que pensam os virtuosos democratas de esquerda, as tendências atuais, simbolizadas pela absolvição de Andreotti, não representam uma simples “restauração” que agora vai desfazer a celebrada fase do “ousar mais democracia”. E também não há um suspiro de alívio pela derrota dos ataques à democracia pelos obscurantistas de direita. O sistema pós-político pode muito bem tomar a forma de uma restauração aparente do status quo ante. Pois a situação política da Itália não será mais a da “Primeira República”. Isso pela simples razão de que, contra todas as probabilidades, prevaleceu um sistema de duas coligações que já não exclui ninguém da participação no poder. Quanto mais forte o vento, mais todos no barco têm de remar na mesma direção. O sistema político italiano está atualmente em uma posição melhor do que antes e eliminou algumas das suas irracionalidades, especialmente o fato de que anteriormente os dois partidos de direita e esquerda (MSI e PCI), que juntos representavam cerca de 40% do eleitorado, foram excluídos por muito tempo do poder, a despeito das suas boas intenções. Agora todos podem participar na administração de emergência, ora juntos, ora alternadamente. Foi dito à casta dos políticos que deveriam enriquecer sossegados, mas que não ficassem demasiado arrogantes, e por isso se fez pendurar uma pequena espada de Dâmocles sobre suas cabeças. Assim reformado, o sistema italiano pode até servir de modelo para os outros. O “modelo” italiano, por muito tempo disfuncional e quase absurdo que pareça aos seus vizinhos, sempre foi “pós-político”, “pós-moderno”. É muito mais adequado para os tempos atuais do que o “modelo Alemanha”, que só pode funcionar em condições ideais. Provavelmente, logo ficará claro que a transição para a pós-política significa menos uma “europeização da Itália” do que uma “italianização da Europa”.[32]

Krisis 23 (2000)

Tradução: Marcos Barreira

Die Gemeinsamkeit der Demokraten in Italien


[1] Na Itália, é assim que são chamados os grupos de poder que realmente contam, para além de todas as ficções democráticas.

[2] Figuras semelhantes tentaram subir ao poder em outros países – Polônia, EUA – ao mesmo tempo, mas apenas na Itália a operação foi bem sucedida.

[3] Mais precisamente, há muitas diferenças na linha oficial do partido, por exemplo, com a Frente Nacional de Le Pen; ao mesmo tempo, a Aliança Nacional consegue manter dentro do partido uma extrema direita ruidosa chamada “ala social” [sic], que é amplamente responsável pelos sucessos eleitorais na periferia das grandes cidades. De resto, as ideias fascitoides mais grosseiras e abertamente racistas são mais facilmente encontradas na “Lega” de Bossi, que, pelo menos como um partido, está em declínio.

[4]De fato, a partir de certo ponto, os meios de comunicação de Berlusconi foram muitas vezes os primeiros a relatar as novas investigações contra Berlusconi, que pareciam confirmar que o pobre homem foi vítima de um pérfido complô de juízes comunistas.

[5] Pelo menos Guy Debord já o previra em 1993.

[6] Enquanto o sistema político da chamada “primeira república” (até 1992) se baseava na exclusão permanente da extrema-direita (MSI) e da esquerda da esfera governamental, depois disso todos os partidos participaram em coligações governamentais durante um período de tempo mais ou menos longo. Tal como Guilherme II, o sistema já não conhece partidos, mas apenas democratas e sujeitos do mercado. Pois nem mesmo a liderança da Rifondazione comunista é contra o mercado (embora talvez alguns dos seus apoiadores o sejam).

[7]Com ele há novamente um genuíno político profissional no governo, depois dos seus quatro antecessores no gabinete de Primeiro-Ministro, como o novo Presidente Ciampi, que não eram políticos profissionais, mas vinham da economia e das finanças. Significativamente, o atual chefe do Banco Central, Antonio Fazi, também já fala como um futuro primeiro-ministro, embora ainda não tenha escolhe seu campo e esteja sendo cortejado por ambos os lados.

[8] Palmiro Togliatti, Opere, hg. von Luciano Gruppi, Band V, Editori Riunti, Roma 198, S. 10.

[9]  Idem, S. 15

[10] Idem, S. 10

[11] Idem, S. 13

[12] Idem, S. 32

[13] Idem, S. 17

[14] Idem, S. 15

[15] Idem, S. 16

[16] Idem, S. 18

[17] Idem, S. 25

[18] Idem, S. 20

[19] Idem, S. 30

[20] Idem, S. 27

[21] Idem, S. 27

[22] Idem, S. 32

[23] Idem, S. 26

[24] “O Mouro cumpriu sua tarefa; ele já pode ir”. Alusão à peça A conspiração de Fiesco em Gênova, de F. Schiller. [NdT]

[25] Idem, S. 29

[26] Quando fez o juramento de posse no palácio presidencial, respondeu à pergunta de um jornalista sobre o que sentia: “Um grande respeito pelas instituições” – ele será provavelmente o único. Mas também disse muito corajosamente que não estava entusiasmado, pois tinha se agitado pela última vez quando, aos cinco anos, ganhou um cavalo de balanço.

[27] Oliviero Diliberto, „Ripensare Togliatti“, in Rifondazione , Jahrgang II, Nr. 8, Oktober 1998, S. 66

[28] Idem, S. 65

[29] Idem, S. 67

[30] Luciano Canfora, „La riscoperta della democrazia“, in Rifondazione Jahrgang II, Nr. 8, Oktober 1998, S. 69

[31] Idem.

[32] Tomo a liberdade de indicar minhas observações na introdução ao meu Schade um Italien – 200 Jahre Selbstkritik, Eichborn, Frankfurt am Main 1997.

Ernst Lohoff: A barreira interna do capitalismo

(2013)

Ralf Hutter, do Neues Deutschland, em conversa com Ernst Lohoff sobre as causas e as consequências da atual crise econômica (13/12/2012)

Ao considerar a crise econômica, no volume publicado pela editora Unrast, A grande desvalorização. Porque a especulação e a dívida estatal não são as causas da crise, Ernst Lohoff e Norbert Trenkle prestam atenção também no desenvolvimento econômico real e se diferenciam de muitas outras publicações sobre esse tema.


Neues Deutschland: Vocês afirmam que seu livro “A Grande Desvalorização” vai mais fundo do que todos os outros livros sobre a crise econômica. Por quê?

E. Lohoff: Acima de tudo porque tratamos da conexão entre esta crise e o esgotamento do trabalho. A maioria das explicações se limita a dizer: ocorreram anomalias nos mercados financeiros, mas em princípio a economia real está em ordem. Nós olhamos para o desenvolvimento econômico real. Argumentamos em um nível fundamental categorial, com a crítica da economia política de Marx como quadro de referência teórico.

ND: A crise atual já aconteceu, de fato, em princípio, em 1857, como você apontou recentemente em uma palestra?

E.L.: Não. Nunca se verificou um desacoplamento entre a acumulação de capital e o dispêndio efetivo de trabalho na dimensão atual, nem algo próximo disso. Mas os surtos manifestos de crise sempre começam pelos mercados financeiros. E os analistas da crise sempre interpretaram isso como a causa do mal-estar. Marx já criticou essa inversão de causa e efeito: se a crise se revela como uma crise financeira – desvalorizações, falências de bancos, ruptura das cadeias de crédito – Marx assinala que o pano de fundo é sempre um desenvolvimento econômico real. A dilatação da superestrutura financeira é sempre o resultado de um impasse da valorização no setor econômico real.

ND: Para vocês a “Terceira Revolução Industrial” desempenha um papel essencial. O que isso quer dizer e quando isso aconteceu?

E..L: O conceito já estava em uso nos anos 1980 e referia-se à introdução da microeletrônica, ou seja, a informatização da produção, que ainda não terminou. O importante para a nossa abordagem teórica é que ela marca algo novo em comparação com as transformações anteriores da base produtiva na história do capitalismo. Nas inovações tecnológicas e grandes impulsos anteriores, predominantemente novos produtos chegaram ao mercado e surgiram, assim, novos campos de dispêndio do trabalho vivo. Um exemplo clássico é a indústria do automóvel – uma das indústrias que sustentou o lendário boom do pós-guerra. O decisivo na revolução microeletrônica é que a sua implantação que atravessa todos os campos de produção tem principalmente um efeito de inovação de processos e, como fator de racionalização, elimina o trabalho vivo em todas as áreas. Esse é o problema que o capitalismo encontra com este tipo de inovação.

ND: Por quê?

E.L.: Porque o trabalho é a mercadoria básica do sistema capitalista. O dispêndio de trabalho vivo torna-se anacrônico. Com essa inovação, o capital tira o chão debaixo dos seus pés.

ND: É aqui que entra um conceito central da sua obra, a saber, o “capital fictício”. O que é isso?

E.L.: Este conceito pretende explicar porque é que, nos últimos trinta anos, esse processo fundamental ainda não se exprimiu em crises manifestas. Por que aconteceu um boom apesar da revolução microeletrônica? A explicação é que houve uma fuga para a superestrutura financeira. Isso marca toda uma época. “Capital fictício” é um termo geral para ações, derivativos e instrumentos de dívida. Ele também tem origem em Marx, que o introduziu como uma espécie de contraste com o capital funcionante. Capital funcionante é o capital que aumenta com a utilização da força de trabalho. Capital fictício, por outro lado, resulta da troca do dinheiro por promessas de pagamento. É, portanto, o capital que representa a antecipação de riqueza futura.

ND: Vocês escrevem sobre os “limites do programa keynesiano de crescimento”. Há em alguma parte da Europa algum partido parlamentar que proponha mais do que o keynesianismo para resolver a crise?

E.L.: Não os vejo. Está na boca de todos. Mas os cavalheiros chegam um pouco tarde. O keynesianismo, essa estimulação da demanda através da expansão do consumo estatal, já estava arruinado, em princípio, desde os anos 1970. Agora esse velho programa é novamente mobilizado. Os Estados, no entanto, já não estão praticando as políticas keynesianas clássicas. Trata-se de uma espécie de keynesianismo de resgate para a indústria financeira. O retorno ao keynesianismo e ao endividamento excessivo dos Estados tem sido principalmente uma tentativa de conter o mal-estar nos bancos. Isso tem apenas um efeito muito secundário na criação de demanda. O principal é a socialização e a nacionalização das expectativas frustradas de futuro do setor privado.

ND: Você, o seu colaborador Norbert Trenkle e o falecido colunista do “ND”, Robert Kurz, ficaram conhecidos como parte do grupo teórico Krisis. Vocês são acusados de falar demais sobre os limites [Grenzen] do capitalismo e vaticinar um colapso do sistema. O que significa “limite” para vocês?

“Limite” não significa que o capitalismo tenha desaparecido mas que, a longo prazo, a potencialidade expansiva do sistema capitalista e a sua busca por atender ao seu próprio objetivo de transformar o capital em cada vez mais capital, conduz a si próprio ao absurdo nesse movimento de expansão.

ND: o que significa esse “contrair”?

E. Lohoff: Significa que a reprodução social é parcialmente interrompida e que a capacidade de sobrevivência desta sociedade é colocada em questão. Já se pode ver isso nos países em crise. Mas aí o conceito de “limite” [Grenze] não faz sentido para mim, pois a ele se seguiria apenas uma nova forma de capitalismo. O “limite” refere-se à sua própria lógica e não significa que dele surgirá uma sociedade melhor. É por isso, a propósito, que dificilmente uso esse termo. Prefiro voltar ao conceito marxiano de “barreira interna” [inneren Schranke]. Há então menos capital à disposição para a sociedade como um todo, de modo que ela tem de empobrecer. Ou, inclusive, devem reinar a guerra e o terror. No nacional-socialismo, por exemplo, não se tocou no capitalismo – é verdade que não havia uma crise fundamental como pano de fundo. Quaisquer que sejam as formas políticas, nossa análise não disse nada ainda a esse respeito.

Título original: Die innere Schranke des Kapitalismus. 
Publicado em https://www.krisis.org/2013/die-innere-schranke-des-kapitalismus/

Tradução: Marcos Barreira, com a colaboração de Javier Blank.

Peter Samol: Um Marx desnatado

(2015)

O livro de Wolfgang Streeck, Tempo comprado, é apenas mais uma contribuição à análise reduzida do capitalismo – em particular, sua celebração da unidade estatal como suposto bastião da democracia.

O livro Tempo comprado, de Wolfgang Streeck, que circula há quase dois anos, é considerado por muitos uma contribuição fundamental para a discussão sobre a crise econômica atual. Jürgen Habermas, o Nestor da filosofia e da sociologia alemãs, chega mesmo a comparar Streeck com Karl Marx. É verdade que o próprio Streeck se encontra dentro da tradição teórica marxista e está “convencido de que o desenvolvimento atual das sociedades modernas não pode ser compreendido sem o uso de certos conceitos-chave que remontam a Marx – e este sempre será o caso” (p. 18). Diferente de Marx, a crise atual em suas formas aparentes e estágios transitórios é considerada por Streeck não como um problema estrutural da forma de socialização capitalista, mas apenas como uma crise de legitimação. De fato, a análise de Streeck se baseia exclusivamente no conceito marxiano de classe, enquanto a lei de Marx da queda tendencial da taxa de lucro (de acordo com Marx, a lei mais importante da economia política) é tão pouco referida quanto os demais elementos teóricos relativos ao problema lógico imanente da economia capitalista. Com sua redução à luta de classes, Streeck se coloca ao lado do Marx exotérico, relativamente ao “duplo Marx” (Robert Kurz). Essa mudança da análise da crise para o plano das relações de classe ou da legitimação tem consequências para a concepção da emancipação. Ignorando o caráter fundamental da crise atual, Streeck pode manter o sonho reformista de domesticação do capitalismo.

Apenas uma crise de legitimação?

Como ponto de partida histórico de sua investigação, Streeck escolheu o final da guerra em 1945. Nesse momento, de acordo com sua concepção, a “classe que depende dos lucros” – ou seja, os proprietários ou gerentes do capital – deveria aceitar uma ampla gama de condições para apresentar a forma social capitalista surgida da guerra como a melhor alternativa diante das condições de concorrência sistêmica com o bloco socialista oriental. Isso levou a um “casamento forçado entre capitalismo e democracia” (p. 27), que foi acompanhado por intervenções políticas constantes no dia a dia dos negócios capitalistas. Daí resultou a expansão do Estado do bem-estar social e da prestação de serviços públicos, sobretudo à custa do capital. Esse arranjo proporcionou ao capitalismo do Ocidente uma ampla legitimação junto à população e fez com que ele aparecesse como a melhor alternativa frente ao socialismo de estado do Leste.

     Isso funcionou bem até a década de 1970. A partir de então, Streeck descreve uma profunda crise de legitimação, mas não por parte das massas, que haviam se acomodado ao trabalho assalariado no interior da sociedade de consumo e do Estado de bem-estar, mas do lado do capital. Desde aqueles anos, este começou lentamente, mas com firmeza, a escapar da regulação estatal. Isso, por sua vez, teria desencadeado a crise permanente, que continua até hoje, apesar de constantes mudanças de aparência. Em sua análise, Streeck sustenta um conceito extremamente simplificado de crise. Para ele, ausência de crise econômica significa simplesmente acomodação, ao passo que as crises econômicas resultam de crises de confiança do lado do capital. Crises econômicas “não são perturbações técnicas, mas sim um tipo particular de crise de legitimação” (S. 49, ênfase no original).

     Os capitalistas primeiro solucionaram a crise recusando a expansão necessária do investimento de capital que permitia o pleno emprego. Em seguida, deram início à crise, se apoderando de partes cada vez maiores da produção, quer dizer, convertendo-as em mais-valia. Isso lhes deu a cobiçada maior fatia do bolo, mas ao mesmo tempo provocou uma crise de vendas, já que a parte retida do valor fazia falta no poder de compra. Os Estados reagiram com uma sucessão de intervenções para compensar o subemprego e, em seguida, a queda do poder de compra. No entanto, elas não podiam coloca rum fim na crise, conseguindo apenas uma estabilização temporária que reiteradamente conduzia à mudança das formas de manifestação da crise. A sequência histórica dos fenômenos de crise consistiu na sequencia: inflação – endividamento estatal – inchaço do setor financeiro (especialmente os bancos) – renovação da dívida estatal para resgatar o setor financeiro – valores de balanço dilatados nos bancos centrais para financiar os Estados. Ao mesmo tempo, a reação a cada novo surto de crise resultou a cada vez no aumento da oferta monetária. Isso provocou um adiamento, até o dinheiro ser finalmente utilizado – é a essa circunstância que se refere o título do livro.

       Em particular, isso pode ser visto do seguinte modo: a) inicialmente, os Estados democráticos tentaram corrigir o rumo do desenvolvimento com o meio keynesiano clássico da política monetária inflacionária. Isso funcionou bem durante algum tempo, pois desarmou o conflito distributivo entre capital e trabalho e assegurou em primeiro lugar o pleno emprego. Por um momento, havia dinheiro suficiente para todos, mas sempre perdendo valor. Isso durou até o dinheiro finalmente se esgotar – como indica o título do livro. No entanto, esse meio se esgotou o mais tardar com o começo da estagflação – uma desaceleração do crescimento apesar da inflação – na segunda metade dos anos 1970. O dinheiro perdeu muito valor, distorcendo as perspectivas de lucro e tornando os investimentos pouco atrativos; b) o passo seguinte foi o endividamento dos Estados. Isso permitiu obter dinheiro que teoricamente poderia ser pago por meio do crescimento econômico e de um futuro acréscimo dos impostos. Mas a conjuntura não atingiu os níveis esperados e as receitas fiscais esperadas não aconteceram. Finalmente, os Estados foram obrigados a consolidar suas finanças colocando fim à política de gastos públicos; c) logo se seguiu uma perigosa diminuição da demanda. A resposta a este problema foi a liberalização dos mercados de capitais, que permitiu um aumento acelerado do endividamento privado. Agora, cabia aos consumidores fechar a falta de demanda com créditos tomados por eles mesmos. Deveriam pagá-los com salários que eles só receberiam no futuro. Ainda que os alemães não tenham aderido o suficientemente, isso foi mais do que compensado por outros países, especialmente pelo consumismo norte-americano e a correspondente exportação para lá. Isso foi possível graças à globalização e aos processos de desregulação e de privatização a ela associados. A substituição da dívida pública pela dívida privada também foi respaldada ideologicamente por uma teoria dos mercados de capitais, segundo a qual estes não exigiriam regulação estatal. Esta estratégia funcionou bem até que a crise do subprime fez com que inúmeros mutuários privados jamais pagassem suas dívidas. Uma quantidade enorme de créditos podres ameaçou quebrar o sistema bancário internacional no ano de crise de 2008; d) Isso obrigou os Estados, que estavam a ponto de se despedir da responsabilidade pela economia, a voltar ao jogo. Eles tiveram que comprar os bancos para tira-los da miséria nos respectivos territórios e, deste modo, endividaram-se mais do que nunca. Então a crise da dívida estatal retornou; e) no final, os bancos centrais tiveram que intervir e ajudar os Estados com notas bancárias ou comprando títulos públicos. Mais uma vez, a oferta monetária aumentou dramaticamente. No entanto, ainda estava nos mercados de valores imobiliários e só ali provocou o aumento dos preços. No entanto, em longo prazo, a ameaça de dinheiro para todos os mercados de bens, aumentando drasticamente os preços lá, faria retornar a inflação.

      Como se pode ver, desde os anos 1970, quando o dinheiro foi usado para comprar dinheiro uma e outra vez, todas as estratégias de compras esgotaram-se após algum tempo. No que diz respeito ao adiamento da crise por meio do dinheiro sem cobertura, existem aqui algumas semelhanças com a análise da crise da crítica do valor. Alguns leitores poderiam facilmente ter a impressão, ao ler superficialmente, que Streeck teria se baseado em críticos de valor como Robert Kurz, Ernst Lohoff ou Norbert Trenkle (para citar apenas os mais importantes) sem citá-los devidamente. No entanto, uma leitura mais atenta rapidamente alivia Streeck dessa acusação no que diz respeito às causas da crise, ou seja, surgem diferenças que dificilmente poderiam ser maiores. Enquanto que para os críticos do valor a causa real da crise reside numa galopante perda da massa de valor, que resulta de uma produtividade crescente e representa um problema lógico incontornável da sociedade da valorização (isto é, do capitalismo), que não pode ser superado no interior da forma de socialização capitalista, Streeck, em oposição, atribui a causa da crise simplesmente à fração demasiado elevada da mais-valia apropriada pelos capitalistas. Esta abordagem não é exclusiva de Streeck, mas está generalizada no mainstream da teoria da crise de esquerda. Esta pode muito bem ser a razão pela qual essa tentativa de explicação questionável dificilmente é discutida e nem parece ser um problema para a maioria dos leitores.

Fim da democracia?

O enfoque da explicação, no entanto, tem consequências para a formação da teoria complementar de Streeck. No decorrer da argumentação, Streeck estabelece um conflito entre o capitalismo e a democracia, que ele considera o problema real a ser abordado. A análise continua com a apresentação de uma série de transformações do Estado. Inicialmente financiado como um “estado fiscal” pela cobrança de impostos, no decurso da década de 1980, ele se transformou em um “estado da dívida”, cada vez mais dependente do empréstimo e, finalmente, se coloca como um “Estado de consolidação”, impondo ele mesmo um freio da dívida, com o suposto propósito de reduzir ainda mais os gastos do governo.

     Em cada mudança, cresce o poder dos credores, que têm uma influência crescente na política estatal para garantir suas reivindicações e afastar o “cidadão” (Staatsvolk). Quanto maior a sua dívida, mais um país está exposto às decisões dos mercados financeiros, o que, entre outras coisas, leva a que as medidas de consolidação sejam aplicadas, se necessário, contra a população. Essa tendência é acompanhada pela delegação de direitos de soberania estatais a instituições e tratados internacionais. Por exemplo, a União Européia está exigindo mercados de trabalho flexíveis entre os países membros, que em regra são acompanhados por políticas salariais restritivas e pelo desmantelamento dos direitos dos trabalhadores. O mesmo se aplica aos tratados internacionais – basta pensar no TTIP. Ambos conduzem, conforme a visão de Streeck, à imunização progressiva do capital contra intervenções democráticas. Para Streeck, o Estado-nação é o único lugar onde é possível um processo decisório democrático; só aqui podem coincidir as reivindicações do capital e as da população. Como ele ignora completamente o lado do “duplo Marx” que leva a uma superação desta forma de socialização, permanece em Streeck apenas a perspectiva de uma limitação do capital, para proteger tanto ele mesmo quanto a sociedade ao seu redor das consequências destrutivas da valorização capitalista desenfreada. Para Streeck, a única instituição que pode realizar tal contenção é o respectivo Estado-nação. Habermas assinalou em sua crítica do direito a postura nacionalista de esquerda como uma “opção nostálgica”, mas  ele mesmo se refugiou na ilusão de uma Europa social para a qual não há nenhum sinal.

A ilusão do capitalismo domesticado

Deve ser mencionado que Streeck, na época como conselheiro do chanceler federal Gerhard Schröder (SPD), esteve envolvido na preparação das reformas Hartz. Por democracia, obviamente, ele entende a república de “labutadores honestos”, enquanto aqueles que veem o problema na própria sociedade do trabalho deveriam, se necessário, ser obrigados à “felicidade” no âmbito do Estado de bem-estar. Isso só é possível para Streeck no âmbito do próprio Estado, que deveria desenvolver todo seu poder de ação por meio da disposição irrestrita sobre o próprio dinheiro e sem interferência de instituições e tratados supraestatais. Ele critica as “velhas teorias da crise” por tratarem o capital como um aparato, não como uma classe. Obviamente, não o incomoda que muitas indicações em Marx apontem os capitalistas como “máscaras de caráter econômico (…) meras personificações das condições econômicas” (MEW 23, 100). A ignorância de Streeck em relação ao momento estrutural expressado nas ações da “classe capitalista”, no entanto, o leva diretamente a uma análise muitíssimo reduzida do capitalismo. Por isso, não em último lugar, Streeck ignora o fato de que, ante um desenvolvimento galopante da produtividade, que substitui continuadamente a mão de obra pela maquinaria, não é mais possível colocar todas as pessoas para trabalhar. Independentemente de esse retorno ao pleno emprego fazer sentido ou não em face da superprodução absurda, do desperdício galopante de recursos e dos danos ambientais irreversíveis, sua impossibilidade é o verdadeiro motivo da perda do poder de compra e crise do emprego, não algum tipo de “insatisfação do capital”. Em vez de domesticar o capital – sempre no âmbito do Estado-nação – deve-se colocar na agenda a busca de uma saída da sociedade do trabalho e, portanto, da forma de socialização do capitalismo. Por outro lado, um Marx de tal modo reduzido, como o encontramos em Streeck, representa um nível tão baixo de gordura em relação ao produto original, que não se pode esperar que daí saia ricota.

Peter Samol é colaborador do Grupo Krisis.

Título original: Der Mager-Marx. Publicado em https://www.krisis.org/2015/der-mager-marx/

Tradução: Marcos Barreira, com a colaboração de Javier Blank.

Norbert Trenkle: Terrorismo do trabalho

(1998)

O trabalho é a coisa mais natural do mundo para o homem socializado no Ocidente; tão natural que, de modo geral, nenhum pensamento é desperdiçando para refletir sobre o que é realmente o trabalho. Se lhe perguntarmos, responderá, em linhas gerais, que o trabalho é apenas a atividade dirigida a um fim, desenvolvida com esforço físico ou mental e, como tal, uma eterna necessidade humana. Talvez se chegue ao ponto de ver no trabalho a essência do homem, ou seja, aquilo que nos diferencia dos animais e nos distancia da natureza. Um texto chamado “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”, como o de Friedrich Engels, do final do século XIX, poderia soar hoje um tanto patético, mas resume o estado de consciência ainda dominante. Sintomaticamente, ele figura precisamente nos círculos de “esquerda” da União dos Sindicatos Alemães (DGB) entre os textos mais valiosos do marxismo.

      Seria na verdade um absurdo negar que, para a conservação e organização satisfatória das condições de vida, é preciso produzir coisas úteis e realizar atividades as mais diversas. Se as pessoas quiserem comer, terão de produzir cereais, legumes e frutos, criar animais; elas têm de cozinhar e, uma vez cultivados os campos, têm de construir e equipar estábulos, celeiros e cozinhas; devem aprender como tudo isto se faz; têm de se pôr de acordo sobre quem e quando se faz o quê, como as coisas produzidas serão partilhadas e assim por diante. Nada disso será fundamentalmente modificado, mesmo que o conhecimento e a técnica permitam reduzir o tempo necessário para tal. Mas, afinal, por que a sociedade burguesa de fato inclui atividades completamente diferentes em uma única abstração – o “trabalho”? 

     À primeira vista pode parecer que se trata de uma abstração que serve apenas para captar conceitualmente a realidade e facilitar sua compreensão, tal como podemos dizer “árvore” quando pensamos na faia, no carvalho ou na bétula. Aqui, no entanto, há uma diferença substancial. A abstração “trabalho” refere-se não ao conteúdo das atividades designadas, mas somente à forma social na qual elas se realizam. O que se considera “trabalho” não é definido por critérios materiais, como a questão sobre que tipo de manuseio é efetuado ou que produtos são produzidos ou quais utilidades concretas eles têm para as pessoas. Decisivo é apenas se uma atividade se enquadra diretamente no contexto social abstrato da produção de mercadorias: e o critério para decidi-lo consiste em saber se essa atividade é feita em troca de dinheiro. Por isso, conforme o contexto, uma determinada atividade pode umas vezes ser considerada trabalho e outras vezes não. Por exemplo, ninguém negará a diferença entre alguém que decora e pinta a sala da sua própria casa e quem desempenha essa mesma atividade como empregado em uma empresa de pinturas. Em ambos os casos, o conteúdo é idêntico, só que no primeiro caso se trata de satisfazer uma necessidade sensível bem determinada (a de ter uma sala mais bonita) e no segundo caso, pelo contrário, trata-se da submissão a uma coerção completamente sem sentido: a coerção social totalitária de ganhar dinheiro. Diante dessa coerção, todas as atividades são iguais, seja qual for o seu conteúdo. Conta apenas a respectiva comercialização. Só dessa maneira elas se transformam em “trabalho”.

     Nas chamadas trevas da Idade Média ninguém se lembraria da ideia absurda de subsumir a atividade de um ferreiro, de uma camponesa, de um cavaleiro e de uma freira em uma única categoria geral e abstrata. Isso só faz sentido em uma sociedade na qual os seres humanos são forçados a vender sua energia vital como “força de trabalho” para um fim que lhes é indiferente e estranho: o cego fim em si mesmo da acumulação de capital. No marxismo, o trabalho sempre figurou como antítese do capital. Também o é, mas apenas como representante de um polo de interesse no interior do sistema geral de referência da produção capitalista de mercadorias. Se o “trabalho” é a forma de atividade na qual os homens precisam vender a sua energia vital para sobreviver, então o conteúdo concreto da sua atividade, em última análise, deve ser-lhes tão indiferente como o é para o capitalista que os contrata. Quer se trate de produzir pesticidas ou de criar autoestradas, de afastar mendigos das calçadas ou de fazer novelas, é o seu “trabalho” que “tem de ser feito”. Claro que isso não exclui preferências pessoais e escrúpulos éticos. O mesmo, no entanto, se aplica também aos capitalistas. Haverá sempre alguém que se recusa a produzir armas, mas sempre se pode encontrar em bom número aqueles que o farão de boa vontade a fim de ganhar dinheiro. A tão citada liberdade de escolha sempre se refere apenas a opções no interior do já pressuposto sistema fetichista do trabalho e do capital.

     Que nos dias atuais a maior parte das pessoas não seja mais consciente do caráter coercitivo do trabalho isso só demonstra até que ponto ele foi internalizado. Mas jamais esqueçamos que, também na Europa, foram necessários séculos de violência aberta ou mesmo uma verdadeira guerra contra a maioria da população, até que as pessoas estivessem prontas para entregar regularmente a sua energia vital em fábricas e manufaturas. O mesmo processo sangrento repete-se, em seguida, com algum atraso, nas colônias e nos países retardatários da modernização do mercado mundial – sem, no entanto, que fosse alcançado um grau de internalização tão profundo como na Europa Central. Aqui o trabalho tornou-se de tal maneira uma segunda natureza do homem que é impossível imaginar outra forma social de produção de riqueza. Um indício terrível disso é que desde então quase todas as atividades (mesmo aquelas que não contribuem diretamente para a produção de mercadorias) são percebidas de modo auto-evidente como trabalho. Até a discussão íntima se torna “trabalho de relação” e mesmo quando dormimos realizamos um “trabalho do sonho”. Não se trata apenas de desvios de linguagem e sim de indicações de quão profundamente a estrutura social dominante penetra no psiquismo dos indivíduos. É por isso que, mesmo com a crise da sociedade do trabalho, os sujeitos moldados pelo capitalismo talvez constituam o maior obstáculo à superação do sistema fetichista dominante. Não querem deixar de trabalhar, mesmo quando há muito se tornou evidente que a acumulação de capital alcançou seus limites absolutos. O elemento de loucura nessa crise fundamental é que ela não radica na carência material, mas, pelo contrário, na produtividade imensamente avançada. Em outras condições sociais, isto poderia servir para fornecer a todos os seres humanos os meios materiais suficientes e, além disso, permitir um imenso fundo de tempo para o ócio e todo tipo de atividades lúdico-criativas. Sob o sistema coercitivo de produção de mercadorias e do trabalho abstrato, no entanto, o estado já atingido pelas forças produtivas conduz inevitavelmente à expulsão de um número crescente de pessoas do acesso aos meios elementares de existência. Em tais condições, todas as boas intenções de “redistribuição” estão, em última análise, condenadas ao fracasso, pois o critério para a participação no dispêndio social permanece o do dispêndio de trabalho. E o mesmo se passa com as ideias de “rendimento básico” ou da “renda cidadã”, uma vez que elas pressupõem a extração do valor no processo de utilização empresarial da força de trabalho viva na produção mercantil. Se esse processo não for parado (o que seria o fim de todas essas fabulações), a redistribuição monetária, na prática, pode ser apenas uma distribuição de esmolas abaixo do nível da proteção social. E mesmo a redução ou flexibilização do tempo de trabalho (seja qual for a versão) pode, quando muito, reintegrar provisoriamente uma pequena parte daqueles que caíram fora do sistema de trabalho – isto, em geral, graças a salários consideravelmente deteriorados.  

     Tudo isto se deve a uma contradição fundamental e insolúvel imanente à moderna produção de mercadorias que consiste, por um lado, na dependência em relação à massa de trabalho colocada em movimento, uma vez que esse é o único jeito de se cumprir o absurdo “sentido” insensível da acumulação de capital. Isso porque o capital não é outra coisa senão a representação fetichista do trabalho passado ou do “trabalho morto” (Marx), do trabalho dispendido no processo de valorização empresarial. Por outro lado, a concorrência do mercado obriga a uma contínua elevação do nível de produtividade das empresas, o que dispensa a necessidade de força de trabalho, minando permanentemente a base econômica da sua própria existência. Até os anos setenta o capitalismo conseguiu mitigar essa contradição fundamental por meio da expansão territorial e da abertura de novos setores e ramos industriais intensivos em trabalho (por exemplo, a produção de automóveis). Com o fim do fordismo, porém, essa estratégia de adiamento chegou ao limite; o potencial de produtividade da microeletrônica e das tecnologias da informação provocaram um derretimento maciço do trabalho nos setores chave da valorização, para os quais não fornecem nada nem próximo de uma compensação. Olhando mais de perto, os alegadamente novos setores promissores de “ocupação”, especialmente no assim chamado setor de serviços, mostram-se rapidamente como produtos da imaginação.

     Mesmo que nesse setor tenha realmente ocorrido uma expansão e não apenas uma ilusão provocada por truques estatísticos, isso não leva de maneira alguma à solução, ainda que temporária, do dilema capitalista. Em primeiro lugar, os “êxitos do emprego” baseiam-se, em parte diretamente, em parte indiretamente, na enorme inflação dos setores do crédito e da especulação, que há muito se tornaram os principais motores da economia mundial. Contrariamente à crença popular, o êxodo de capitais para essa esfera não é um obstáculo aos investimentos produtivos, mas oferece sobretudo uma alternativa conveniente para o dinheiro que não pode mais ser investido de modo “rentável” na economia real. A crise estrutural da valorização não é solucionada desse modo, mas apenas adiada por algum tempo. Quanto maior for o adiamento, mais a especulação ganha uma existência autônoma e maior será o golpe sobre a acumulação real, o sistema social e as finanças do Estado (os acontecimentos do Sudeste Asiático são apenas uma pequena amostra). 

     Enquanto o jogo funcionar, os refluxos permitem ainda manter e criar “postos de trabalho” que de outra forma jamais poderiam ser financiados. Isto se aplica não apenas ao setor estatal que, para o bem e para o mal, depende do crédito, mas igualmente e de modo crescente a uma grande parte do “emprego” capitalista privado; os lucros especulativos são também, em parte, gastos na compra de bens de consumo, construções e serviços e, com isso, colocam o trabalho em movimento. Sobretudo nos Estados Unidos, onde muitos pequenos investidores aplicam seu patrimônio em ações, os ganhos na bolsa nos últimos anos têm sido um motor decisivo para o consumo. E se, em 1999, o orçamento dos Estados Unidos, pela primeira vez em trinta anos, teve um pequeno excedente, é, sobretudo, devido aos ganhos especulativos. Tal com previu Lawrence Lindsey, do banco central norte-americano, a administração Clinton programou um total de 225 bilhões de dólares em receitas adicionais até 2002 (ver Wirtschaftswoche 13.11.97). Lindsey fala ironicamente de um “Maná caído do céu”; em todo o caso, um céu bastante profano, que muito em breve pode desmoronar.

     Em segundo lugar, os novos “postos de trabalho”, especialmente no setor terciário, só são competitivos por causa dos salários extremamente baixos, dos níveis de proteção social e direitos trabalhistas em grande parte ou totalmente desmontados e da ausência de impostos ou encargos. A produtividade econômica insuficiente é, de tal modo, compensada superficialmente (e de modo apenas parcial) no nível monetário pela exploração extrema da força de trabalho e por meio da transferência de custos para o Estado. Isso, no entanto, não resolve a contradição de base da crise. Do ponto de vista da valorização do capital, não importa apenas que a força de trabalho seja utilizada, mas se ela representa valor (e quanto ela representa). O critério aqui é o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de um determinado produto no nível dado pelas forças produtivas. Por isso, a referência do valor é determinada pelos setores produtivos centrais da produção no mercado mundial. O próprio setor dos baixos salários não escapa, permanecendo submetido a essa concorrência.

     De tal modo, quinhentas horas de trabalho de uma costureira de fundo de quintal podem produzir uma quantidade menor de peças e, portanto, representar menos valor do que uma única hora de trabalho de um robô têxtil equipado com laser. O mesmo se aplica ao amplo setor dos serviços comerciais que em si mesmos não “produzem” valor e ainda assim são sistemicamente indispensáveis, pois as mercadorias precisam ser vendidas. O conjunto dos pequenos comércios e do comércio ambulante que, especialmente nos países do Terceiro Mundo, constitui uma grande parte do setor informal, deve ser medido, em última análise, pelo setor racionalizado das cadeias de supermercados, que movimentam muito mais mercadorias com uma parte reduzida de funcionários. Na discussão teórica sobre o desenvolvimento, nos anos 1970, esse fenômeno era conhecido como “desemprego oculto”, porque, do ponto de vista econômico, era gasto aqui um tempo de trabalho supérfluo. Ele foi visto como um fenômeno de transição nos países do Terceiro Mundo que, desapareceria no decurso da modernização capitalista (nesse meio tempo fracassada). No cinismo do discurso neoliberal, pelo contrário, faz a melhor impressão que agora também nas metrópoles ocidentais as pessoas sejam cada vez mais obrigadas a vender a sua força de trabalho de forma subprodutiva em termos capitalistas e, portanto, em condições miseráveis. O decisivo é que trabalhem.

     Ainda que esse terrorismo do trabalho, no final das contas, não funcione economicamente, é hoje uma estratégia terrivelmente eficaz de gestão da crise. Tal como no início da produção capitalista de mercadorias, a coerção do trabalho é novamente propagada e aplicada, só que não mais para impor a disciplina da fábrica ou recrutar as pessoas para o “exército do trabalho” e sim como meio de disciplinamento para uma população realmente supérflua do ponto de vista da valorização. Enquanto as casas de trabalho modernas serviam para instalar uma nova forma de reprodução social contra a resistência de grande parte da população, a atual coação do trabalho, propagandeada em igual medida por neoliberais, socialdemocratas e radicais de direita, não tem outro propósito senão a preservação desta forma historicamente há muito ultrapassada. O pior de tudo é que isso serve aparentemente a uma necessidade de massa profundamente enraizada. Onde ocorrem protestos as pessoas não estão contra, mas a favor do trabalho – isso enquanto a raiva não se manifesta também em projeções racistas, antissemitas e de darwinismo social. Enquanto a crise avança inexoravelmente, as pessoas se agarram sem hesitar à ilusão masoquista de que têm de vender a sua energia vital em condições cada vez mais miseráveis. Caso não seja possível romper com essa fixação fatal e criar uma consciência de que os potenciais de produção de riqueza historicamente criados devem ser libertados das formas fetichistas do capital e trabalho, a crise da sociedade do trabalho destruirá completamente os fundamentos sociais e naturais da vida.

Publicado com o título “Terrorismus der Arbeit” na revista Juridikum 2/98, Viena, 1998.

Tradução: Marcos Barreira

Norbert Trenkle: A crise climática e a transformação social na época do coronavírus

(2020)

Por que a produção capitalista de riqueza deve ser superada

Um dos curiosos efeitos colaterais da crise do coronavírus é que em apenas algumas semanas ela contribuiu para melhorar o clima mundial mais do que toda a política climática dos últimos anos. Devido à redução do trânsito de carros nas grandes cidades em até 80%, à drástica redução do tráfego aéreo e ao fechamento de muitas plantas de produção, o Projeto Global de Carbono prevê uma redução nas emissões de CO2 de cerca de 5% para o ano de 2020. Parece inclusive que o governo alemão, apesar de suas medidas estéreis de política climática, poderia alcançar a meta de reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 40% em relação a 1990 (Süddeutsche Zeitung, 24/3/2020).

Frenagem curta

No entanto, não há razão para esperar que a crise do coronavírus leve a uma redução permanente das emissões nocivas ao meio ambiente e a um limite para o aquecimento global. A interrupção temporária das atividades econômicas em grandes partes do mundo nada tem feito para mudar a lógica básica do modo de produção capitalista, impulsionada pelo fim em si mesmo do aumento infinito de riqueza abstrata, representada no dinheiro. As medidas tomadas para combater a pandemia não eliminaram de forma alguma a compulsão ao crescimento que resulta desse fim em si; apenas a desaceleraram por um curto período de tempo. Ao mesmo tempo, governos e bancos centrais estão fazendo todo o possível para mitigar essa manobra de frenagem, manter precariamente o impulso econômico e retomá-lo o mais rápido possível uma vez que as medidas de contenção tenham terminado. É pouco provável que isso tenha sucesso. Embora a grande crise econômica mundial que acaba de começar tenha sido desencadeada por medidas contra a pandemia, o impulso com que se espera que se desenvolva tem razões mais profundas e estruturais que não podem ser remediadas por pacotes de estímulos econômicos e injeções de liquidez.

Poder-se-ia argumentar cinicamente que uma crise econômica global é benéfica para o clima, já que a redução da atividade econômica resulta em menor liberação de gases de efeito estufa e outras substâncias nocivas. As estatísticas sobre as crises das últimas décadas – e particularmente a crise financeira e econômica de 2008/2009 – confirmam esse fato. Mas esse alívio ecológico é apenas o outro lado de um empobrecimento maciço de grande parte da população. Como na sociedade capitalista todas as relações sociais tendem a assumir a forma de mercadorias e, portanto, o acesso aos bens é feito predominantemente através do dinheiro, a interrupção do fluxo mercadorias-dinheiro leva necessariamente a um colapso mais ou menos severo da provisão social: empresas vão à falência, forças de trabalho são dispensadas e, como as fontes de renda se esgotam, milhões de pessoas não podem mais pagar nem mesmo os bens mais essenciais. Evidentemente, a questão não é se os produtos e serviços em questão são socialmente necessários, qual o seu impacto ambiental e em que condições são produzidos, pois esses critérios não têm nenhum papel no mundo da produção de mercadorias. O que importa é se os bens produzidos podem ser colocados no mercado e ter lucro.

A riqueza material

Por isso é evidente durante as crises que enquanto muitas pessoas não podem sequer comprar alimentos e hospitais são fechados porque não são mais “rentáveis” ou o financiamento público é cortado, carros continuam sendo produzidos, centrais elétricas a carvão continuam operando, viagens aéreas continuam e apartamentos de luxo são construídos. Nas crises, torna-se especialmente evidente que nas condições capitalistas só conta a riqueza abstrata, ou seja, a riqueza expressa em unidades monetárias; em contrapartida, a riqueza material, ou seja, a riqueza em bens úteis e serviços de assistência, é apenas um meio subordinado ao objetivo da acumulação de capital e, portanto, sacrificada quando esse propósito não pode mais ser cumprido.

Na maioria dos países, o Estado interveio na crise do coronavírus no sentido de garantir algum abastecimento público e evitar o colapso imediato das empresas devido às medidas de isolamento e à interrupção da economia. Mas mesmo que as medidas emergenciais mostrem claramente que o mercado não pode regular tudo, como propagado pela ideologia neoliberal, o acesso do Estado à produção da riqueza social continua limitado.

O Estado

É verdade que, na sociedade capitalista, o Estado representa o geral e é responsável pela manutenção do contexto social, contra a tendência centrífuga dela mesma. Sem o Estado, a sociedade capitalista se desintegraria em muito pouco tempo, porque se constitui fundamentalmente de forma contraditória. A produção geral de mercadorias significa que as pessoas estabelecem seu vínculo social produzindo coisas de maneira particular para outros anônimos. Em outras palavras, eles se comportam socialmente ao perseguir seus interesses particulares e privados; em outras palavras, são sociais de forma associal1. A dinâmica de interesses particulares conflitantes, resultante dessa contradição fundamental, explodiria muito rapidamente o contexto social se não houvesse uma instância separada para impedi-lo e garantir o quadro da atividade geral dos produtores de mercadorias. Entretanto, o Estado não está de forma alguma acima da lógica de produção de riqueza abstrata, esta é ao mesmo tempo um de seus requisitos essenciais e permanece subordinado a ela. Uma de suas tarefas particulares é manter a dinâmica da produção de mercadorias e da acumulação de capital. Se falhar, em primeiro lugar perde sua legitimidade aos em face da população e, em segundo lugar, sua capacidade de agir, pois só pode cumprir suas tarefas se tiver os meios financeiros necessários.

Portanto, se o Estado pode intervir no mercado e até fechá-lo temporariamente em função de um interesse geral, como no caso de uma pandemia, também deve fazer todo o possível para reativar a acumulação de capital. E é a esse objetivo, via de regra, que então todos os outros interesses e objetivos são subordinados.

Livrando-se das regulamentações

Portanto, também é previsível que, após a fase aguda da crise, as capengas medidas de política climática dos últimos anos sejam bombardeadas. Os representantes empresariais já estão exigindo que obstáculos como as normas de proteção ambiental sejam removidos, para que a economia possa ser recolocada nos trilhos rapidamente após o fechamento. Por exemplo, os principais fabricantes de carros da Alemanha estão pressionando a Comissão Européia para revogar os limites de CO2 que serão aplicados a partir de 2020. E o primeiro-ministro da Baixa Saxônia está pedindo um prêmio para sucata de carros, naturalmente apenas para incentivar uma mudança para a “propulsão verde”, como se o trânsito de carros não fosse em si um dos maiores problemas ambientais de todos. Isso não é tudo. Assim como os ideólogos da economia de mercado estão pesando as conseqüências da pandemia e os danos econômicos do bloqueio, eles argumentarão que não só o aquecimento global, mas também uma economia enfraquecida é uma ameaça à humanidade, fazendo com que milhões de pessoas percam o seu sustento. Ao fazê-lo, admitem fundamentalmente que o capitalismo conduz a humanidade a uma dependência fatal em relação à sua lógica destrutiva de acumulação e lhe propõe as alternativas de morrer pela destruição ecológica ou pelas dificuldades econômicas. Entretanto, esse argumento encontrará grande ressonância entre aqueles que temem por sua existência diante da crise e não têm esperança em nenhuma outra forma de sociedade.

Portanto, para que a “questão climática” não desapareça da agenda política, ela deve ser reformulada de forma adequada à nova situação de crise social. Isto não é tão difícil como pode parecer à primeira vista. Medidas para salvar o clima e proteger as bases naturais da vida só entram em conflito com a salvaguarda da existência humana e a proteção social se a forma capitalista de produção de riqueza for tida como obvia. Como, em princípio, na sociedade atual, todas as pessoas dependem da produção de riqueza abstrata para sua sobrevivência, elas se encontram em uma espécie de tomada de reféns. Eles devem esperar que o movimento incessante de acumulação de capital como um fim em si mesmo continue, pois é a única maneira de vender sua força de trabalho ou suas mercadorias, mesmo sabendo que isso vai impulsionar ainda mais a catástrofe ecológica em andamento2.

Mas ao questionar essa forma de produção de riqueza, a contradição se dissolve. Porque se a produção social é orientada para a riqueza material, ou seja, para o objetivo de produzir coisas úteis para atender às necessidades concretas-sensíveis de todas as pessoas, então uma orientação ecologicamente sustentável da sociedade não entra mais em conflito com uma boa proteção material da vida, mas coincide com ela. Seria então totalmente irracional, por exemplo, injetar gases nocivos ao clima na atmosfera, derrubar florestas em escala maciça ou poluir o lençol freático, sabendo que isso destruiria a base da vida humana. E seria absurdo endossar a produção de bens nocivos ao meio ambiente e à saúde, só porque ela permite que muitas pessoas vendam sua força de trabalho e obtenham uma renda. Mas, sob condições capitalistas, é exatamente isso o que é “racional” – pois toda a vida social se baseia na produção de riqueza abstrata.

Portanto, é importante colocar o foco da crítica neste tipo de “razão” e no modo de produção e vida que a sustenta. Isto, obviamente, muda também a perspectiva política.

Os defensores do mercado livre: inicialmente em uma posição fraca

A “questão climática” passa então a fazer parte de um conjunto de “questões” essenciais, que podem ser respondidas em conjunto por meio de uma transformação radical da produção de riqueza ou, mais precisamente, através de uma orientação da produção da riqueza social para critérios materiais concretos e para o objetivo de uma boa vida para todos. Evidentemente, tal objetivo político levará a conflitos ferozes; porque, em última análise, significa um questionamento fundamental do modo capitalista de produção e vida, que é muito mais do que um “sistema econômico”, está profundamente enraizado nas relações sociais e subjetividades. Entretanto, também neste sentido, a crise do coronavírus contribuiu de alguma forma para abalar algo do que até agora era tido por óbvio. Quando os pagamentos dos aluguéis são temporariamente suspensos, os controles de pago do transporte público são dispensados, a reversão da privatização e da mercantilização do sistema de saúde são exigidas, e os governos propõem estatizar as empresas para garantir os serviços públicos, a lógica da riqueza abstrata é quebrada e a riqueza material é colocada no centro. Mesmo que sejam apenas medidas de emergência temporárias, que o Estado cumpre de acordo com seu papel de guardião do geral, representam uma profunda ruptura com a ideologia neoliberal, já amplamente questionada na esteira da crise financeira e econômica de 2008.

Por essa razão, qualquer tentativa de, após a fase aguda da crise, retornar ao status quo político anterior provocará ferozes disputas sociais sobre como organizar e garantir o provisionamento geral da sociedade. Esta disputa já começou ao nível midiático. Os defensores do mercado livre estão inicialmente em uma posição fraca, pois a crise do coronavírus revela impiedosamente que a privatização e a mercantilização do sistema de saúde e outros setores da provisão pública têm conseqüências desastrosas para a sociedade. Diante disso, a solução óbvia parece ser uma ampla estatização ou re-estatização desses setores. Nesse contexto, cada vez mais vozes se fazem ouvir no discurso de esquerda, apelando para uma renovação do Estado keynesiano, social e regulador, ou mesmo do socialismo de Estado, e no espectro verde há esperança de que o capitalismo seja reformado sócio-ecologicamente através de exigências estatais e incentivos da economia de mercado.

No entanto, isso esquece o fato de que o Estado, mesmo desde um ponto de vista fundamental, em suas ações e em seu acesso à riqueza material sempre se refere ao sistema de produção de riqueza abstrata. O Estado tem margem de manobra na forma como desempenha as tarefas públicas, na medida em que as desigualdades sociais são reduzidas e na forma como incide nas condições de produção e trabalho. E, claro, é politicamente correto usar essa margem para, na medida do possível, alcançar melhorias sociais e ecológicas. Mas, mesmo assim, o Estado não pode eliminar a dinâmica fundamental e auto-referencial da produção de riqueza abstrata, mas apenas reparar ou maquiar de alguma forma suas piores conseqüências.

Margem de manobra dos Estados

Além disso, aquela grande época do capitalismo regulado pelo Estado e mitigado socialmente, baseado no trabalho em massa no setor industrial e num forte mercado interno, já acabou e não pode ser recuperada. Na era da financeirização e da globalização, o campo de ação dos Estados está se tornando cada vez mais restrito, pois eles têm de fazer todo o possível para manter seu próprio território atraente como local para o capital e, sobretudo, para garantir o influxo de capital fictício3.

Desde que a Terceira Revolução Industrial tornou cada vez mais força de trabalho “supérflua” para a produção de mercadorias, a acumulação de riqueza abstrata deslocou-se para os mercados financeiros, onde desenvolveu uma dinâmica impressionante baseada na antecipação de valor futuro na forma de títulos financeiros (capital fictício). Portanto, nas recorrentes e cada vez mais agudas crises financeiras, os Estados não têm outra escolha senão fazer “o que for necessário” (Mario Draghi) para salvar o sistema financeiro e bancário do colapso. Isto não será diferente na crise do coronavírus. O curso dessa crise difere das crises financeiras das últimas décadas, pois foi desencadeada por medidas políticas de paralisação das atividades econômicas e sociais e, portanto, tem um impacto direto na “economia real”. No entanto, ela se espalhou imediatamente para os mercados financeiros já sobre-estimulados, provocando enormes perturbações com conseqüências ainda imprevisíveis.

Portanto, é fácil prever que a prioridade dos governos e dos bancos centrais será em breve resgatar novamente o sistema bancário e financeiro. Porque se ali for desencadeada a avalanche de promessas futuras descobertas, isso arrastará grandes partes da “economia real” e dos serviços públicos para o abismo. No entanto, ao contrário do ocorrido em 2008/2009, desta vez os instrumentos de política monetária dos bancos centrais já se esgotaram em grande parte e, além disso, a nível político global não se pode esperar que as grandes potências econômicas cheguem a um acordo sobre uma abordagem conjunta. Ao contrário, está ficando claro que cada um deles está perseguindo seus próprios interesses em detrimento dos outros e que a tendência já existente para a segregação nacionalista e regional está ganhando um impulso adicional4. O governo alemão demonstra isso ao detonar a União Européia com sua rejeição aos Eurobonds, que não só é infame e mesquinha, mas também de visão estreita, pois objetivamente a República Federal da Alemanha é a que mais se beneficia da unidade européia e do Euro. Mas o nacionalismo segue sua própria lógica perigosa, que não é necessariamente funcional em um sentido econômico.

Gestão autoritária de crises e emergências e oposição social

O retorno do Estado acontecerá, portanto, sob auspícios muito diferentes dos planos esperançosos da esquerda e dos verdes. É certamente de se esperar que, sob pressão pública, a estatização de emergência de muitos setores seja mantida ou mesmo ampliada. Ao mesmo tempo, porém, aludindo aos custos da gestão da crise, os governos aplicarão uma rigorosa política de austeridade que será acompanhada de apelos nacionalistas à disposição da população para o sacrifício e de medidas de controle mais rigorosas, como as que estão sendo testadas em grande escala. Porque não é apenas a lógica do mercado que se vê comprometida diante das tarefas sociais que se avizinham, mas o sistema de referência da produção de riqueza abstrata num todo que está desmoronando. Por esta razão, em cada vez mais países a ação estatal está sendo reduzida à gestão autoritária de crises e emergências. Quanto menos o Estado pode assegurar sua legitimidade como guardião do geral, garantindo os serviços públicos, mais claramente emerge seu núcleo autoritário.

Para combater esse desenvolvimento ameaçador, a oposição social e política que ele vai gerar ou já está gerando deve ser reunida. Isto não é nada fácil. As muitas lutas contra a intensificação da política de austeridade e da política de controle do Estado, contra a destruição dos recursos naturais e do trânsito de carros, contra a moradia impagável e a precarização das condições de trabalho, etc. são muito rapidamente transformadas, dentro do sistema de produção de riqueza abstrata, em lutas de interesses particulares que podem até se enfrentar entre si politicamente; por exemplo, quando o movimento climático exige o maior imposto possível sobre o CO2, isso coloca uma carga particularmente pesada sobre os setores mais pobres da população. Deve ficar claro, portanto, que essas lutas e conflitos, por diferentes que pareçam à primeira vista, sempre convergem negativamente em um ponto: são o efeito da lógica autonomizada e destrutiva da produção de riqueza abstrata e a forma contraditória de sociabilidade associal que lhe está subjacente.

Somente quando essa comunhão negativa se torna consciente, as diferentes lutas podem virar uma força comum que questiona fundamentalmente o modo capitalista de produção e de vida. Mas também é preciso uma nova perspectiva de emancipação social que, no entanto, resulta em linhas gerais, pela negação, da crítica ao sistema de riqueza abstrata.

Auto-organização

É claro que isso não pode consistir em reciclar a velha idéia de estatização da vida social; pois além do fato de que o Estado sempre foi apenas o outro lado do mercado, seu retorno hoje só é concebível na forma de autoritarismo de crise, nacionalismo e regressão política. Trata-se antes da socialização completa da produção e da provisão pública no âmbito de uma auto-organização social geral e livre, além da produção de mercadorias e da lógica da administração e dominação estatal. É claro que isso não acontece de uma só vez, mas no decorrer de um processo mais longo de transformação social. O que isto significa em detalhes não pode ser previsto, mas é claro que este processo será caracterizado por conflitos políticos sobre os recursos e potencialidades da produção de riqueza e sobre as condições gerais para o desenvolvimento de novas formas de cooperação social, comunicação e planejamento. Porque a alternativa social não emerge de nenhum nicho, como imaginado em muitos conceitos alternativos. Só pode ser constituída na luta pelo campo da generalidade social. É preciso reinventar este campo; não como o lado autoritário de uma produção de riqueza que se autonomiza e se enfrenta a seus atores como “segunda natureza”; mas como parte de uma sociedade na qual as pessoas controlam suas relações conscientemente.

Original: Klimakrise und gesellschaftliche Transformation in Zeiten von Corona, em https://www.krisis.org/2020/klimakrise-und-gesellschaftliche-transformation-in-zeiten-von-corona/

1Norbert Trenkle: Ungesellschaftliche Gesellschaftlichkeit [Sociabilidade associal], www.krisis.org, 2019

2Norbert Trenkle: Lizenz zum Klimakillen, Streifzüge 77, Wien 2019 [Licença para matar o clima, em: https://www.krisis.org/2019/licena-para-matar-o-clima/]

3Ernst Lohoff/Norbert Trenkle: Die große Entwertung [A grande desvalorização], Münster 2012; Norbert Trenkle: Workout. Die Krise der Arbeit und die Grenzen des Kapitalismus [Workout. A crise do trabalho e os limites do capitalismo], www.krisis.org, 2018

4Ernst Lohoff: Die letzten Tage des Weltkapitals. Kapitalakkumulation und Politik im Zeitalter des fiktiven Kapitals [Os últimos dias do capital mundial. Acumulação de capital e política na épocado capital fictício], Krisis 5/2016

Tradução: Javier Blank

Norbert Trenkle: Licença para matar o clima

(2019)

Porque a crença no imposto sobre o carbono é ilusória e não pode haver uma “economia de mercado ecológica”

1.

Dizer que o imposto sobre o carbono não produz os efeitos prometidos é pouco. No geral, ele não conduzirá a uma redução significativa das emissões nocivas para o clima, nem iniciará uma “transformação ecológica” da economia de mercado; pelo contrário, é uma carta branca que a sociedade se dá para poder continuar como antes. Compreender isto não requer muita imaginação; um pouco de conhecimento prático é suficiente. Mesmo que o imposto conduza a alguma poupança nas emissões de carbono aqui e ali, é bastante previsível que esta venha a ser compensada por um maior consumo de recursos em outros lugares. Esse mecanismo é há muito conhecido e amplamente discutido na literatura pós-crescimento. Poupanças relativas no consumo de energia (por exemplo, por motores mais eficientes) são sobrecompensadas pelo aumento do consumo absoluto (por exemplo, carros maiores e em maior quantidade). Este é o chamado efeito rebote material. Além disso, as medidas políticas com fachada ecológica legitimam a manutenção do modo existente de vida e de produção e estimulam ainda mais o crescimento econômico, uma vez que supostamente já foi dada uma contribuição relevante para a conservação da natureza e do meio ambiente. Isto é referido como efeito rebote político. Um exemplo típico disso foi a introdução de catalisadores de escape na década de 1980, que se destinava a tornar os carros “amigos do ambiente”, mas que na realidade apenas serviu de álibi para a expansão do tráfego de carros (desde então, ele duplicou na Alemanha). Finalmente, existe o efeito rebote psicológico, que consiste em proporcionar aos consumidores uma consciência tranquila para que eles possam continuar comprando sem inibições as mercadorias residuais produzidas em massa.

Se fosse preciso uma prova que o imposto sobre o carbono funcionará exatamente desta forma, o debate em curso a entrega de bandeja. Os líderes políticos de todo o espectro partidário apressam-se a elogiar os efeitos esperados de poupança, para recuarem imediatamente pelo fato de o imposto, evidentemente, não ter que ser um fardo pesado demais para a sociedade. As propostas mais absurdas são as de distribuir imediatamente à população as receitas advindas do novo imposto. Pois aqueles que fossem recompensados por ter uma pegada de carbono um pouco inferior à média certamente reinvestiriam imediatamente o rendimento adicional em mais consumo, de modo a que o uso de recursos ocorra em outro lugar.

2.

Para produzir realmente um efeito ecológico significativo, o imposto sobre o carbono deveria ser suficientemente elevado para restringir maciçamente o consumo de todos os bens e serviços de grande intensidade energética. No entanto, isso abrangeria quase toda a gama do consumo, desde os carros e o aquecimento até o transporte aéreo e a maioria dos produtos industriais e agrícolas. Claro que isso não vai acontecer. Não simplesmente porque os grupos de interesse da indústria e das empresas tentam impedir isso por todos os meios (e é claro que o fazem). Mas porque nenhum partido político relevante irá contra a lógica interna de um sistema econômico e social cuja essência se baseia no imperativo do crescimento econômico sem fim. Essa coação pelo crescimento resulta do fato de, no sistema de economia de mercado, a produção de riqueza social como um todo estar sujeita a um único propósito: o de fazer do dinheiro mais dinheiro. O dinheiro, no entanto, é a expressão de uma forma historicamente muito específica de riqueza social. Representa riqueza abstrata, riqueza que se comporta de maneira indiferente em relação aos fundamentos materiais e concretos e às condições de sua produção. O que conta é apenas o fato de o mecanismo de multiplicação do dinheiro, ou seja, a acumulação de capital, permanecer em movimento, porque a sociedade inteira se agarra nele como um viciado à agulha.

A produção de riqueza abstrata, no entanto, tem sempre um lado concreto-material. Os bens são produzidos, os transportes são realizados, as máquinas são postas em movimento, as matérias-primas são extraídas, as florestas são desmatadas e, naturalmente, a mão de obra é sempre utilizada. Mas tudo isto é sempre apenas um meio para o objetivo efetivo da produção. O mundo material-concreto está assim subordinado à produção de riqueza abstrata. E isto nos leva ao cerne do problema. Ao contrário do que acontece no mundo material-concreto, não há limites no mundo da riqueza abstrata. Neste, rege a lei da multiplicação sem fim. Se uma soma de capital produziu um lucro, no período seguinte este funciona como capital e deve, por sua vez, gerar lucro, que deve então ser reinvestido, e assim por diante. É óbvio que essa dinâmica de coerção não é compatível com a limitação natural do mundo material-concreto. Pelo contrário, a produção de riqueza abstrata implica inevitavelmente a destruição dos fundamentos naturais da vida. Quanto mais o modo de produção capitalista se estabeleceu em todo o globo e mais ele se expande, mais depressa progride essa destruição. A fome de riqueza abstrata faz com que a produção de recursos materiais cresça em escala exponencial. Esta perspectiva não é nenhuma novidade. Já no século XIX alguns autores apontavam para isso – entre eles, um certo Karl Marx. E o mais tardar desde a aparição do primeiro relatório do Clube de Roma, em 1972, a percepção de que há “limites para o crescimento” penetrou também na consciência geral.

O fato de, apesar disso, seguirmos como se tudo aquilo fosse uma nota de rodapé na história não se deve à incapacidade dos políticos ou à sua relutância em levar a sério as descobertas científicas, como muitos dos membros do movimento Fridays for Future acreditam. A razão é antes a enorme inércia de um modo de vida e de produção social que desde então se impôs em todo o mundo e, por conseguinte, parece não ter alternativa. Embora a maioria das pessoas não tenha capital à disposição, elas são igualmente dependentes da continuidade do processo de acumulação. Para sobreviverem nas condições dominantes, têm de vender sua força de trabalho ou dependem de outros fluxos de dinheiro, por exemplo, sob a forma de benefícios sociais, que também devem ser alimentados pelo ciclo do capital. É por isso que a maioria das lutas de interesses giram em torno da distribuição do dinheiro e tomam como natural o mecanismo por trás dele. Essa é a razão mais profunda pela qual o crescimento econômico goza do estatuto de religião e só é seriamente questionado por minorias sociais. Não é que a maioria das pessoas seja estúpida ou mesquinha. Elas simplesmente sabem muito bem que, nas condições dominantes, não seria boa para elas uma retração da economia.

Uma rápida e consistente mudança radical na base energética seria uma ruptura tão grave que, especialmente nos centros capitalistas, não poderia ser implementada sem as mais severas convulsões econômicas, sociais e políticas. A desvalorização maciça das instalações e infraestruturas industriais existentes provocaria um choque econômico e traria consigo uma grave crise, cujos custos seriam distribuídos também de forma muito desigual. Ela afetaria sobretudo as regiões e as camadas da população particularmente dependentes das indústrias e estruturas fósseis. Além disso, haveria ainda enormes custos do lado do consumo. Milhões de carros convencionais seriam desvalorizados de fato, as moradias teriam de ser massivamente equipadas com novos sistemas de aquecimento e isoladas termicamente, enquanto, ao mesmo tempo, os preços de praticamente todos os alimentos e bens de consumo disparariam. Mais uma vez isso afetaria principalmente as pessoas com rendimentos baixos e médios, sem qualquer margem de manobra financeira.

3.

Portanto, quando os opositores do imposto sobre o carbono o acusam de “antissocial”, eles têm fortes argumentos a seu favor. Naturalmente, trata-se predominantemente de pessoas indiferentes à “questão social” e que apenas a instrumentalizam aqui por motivos políticos e ideológicos evidentes. No entanto, eles apontam para um problema que deve ser levado a sério. É certo que as disparidades sociais e regionais já existentes aumentariam significativamente e, com isso, também seriam intensificados os conflitos sociais pela distribuição, como já foi demonstrado pelos protestos dos coletes amarelos. Além disso, a disputa sobre a política climática está há muito tempo carregada ideológica e politicamente, e polariza a sociedade. Não é por acaso que a relativização ou negação da mudança climática faz parte do núcleo da ideologia populista de direita. Esta representa essencialmente uma forma regressiva de reação à experiência dos limites atingidos pela supremacia branco-ocidental no mundo. É por isso que os seguidores populistas de direita odeiam com particular fervor todos aqueles que lhes recordam a perda dos seus privilégios supostamente evidentes. Para além dos refugiados, dentre estes estão especialmente os defensores e as defensoras do clima, que se opõem a que os custos do estilo de vida nos centros capitalistas sejam transferidos para o resto do mundo e para as gerações futuras.

Essa situação política e social tensa explica por que razão o discurso político, sob pressão do movimento Fridays for Future, retomou o apelo a um imposto sobre o carbono, mas apenas para reduzi-lo imediatamente a um nível homeopático. Os Verdes não são exceção. Já estão pisando o freio e o farão ainda mais caso regressem ao governo. Em relação à estreita margem da ação política sob condições capitalistas, isto é perfeitamente racional; um governo que agisse de forma diferente desencadearia uma dinâmica de conflito social incontrolável e seria derrubado em um curto espaço de tempo. Aqueles que defendem um imposto sobre o carbono bem elevado no fundo também sabem disso. No entanto, suprimem-no ao afirmar que seria perfeitamente compatível com o crescimento e a criação de novos postos de trabalho; tratar-se-ia apenas de um instrumento de controle para orientar as atividades da economia de mercado numa nova direção e para mudar para formas de energia “sustentáveis”. Com essas e outras medidas semelhantes, alegadamente seria possível implementar até mesmo uma “economia de mercado ecológica”.

Em princípio, quase todos os economistas compartilham a visão de que economia de mercado e ecologia podem ser reconciliadas, bastando para isso a competência política. A controvérsia consiste apenas em quais medidas conduziriam melhor a esse objetivo. O comércio de licenças de emissão é particularmente elogiado como alternativa ou complemento ao imposto sobre o carbono. Por um lado, porém, já existe há quase 15 anos no nível da UE, onde provou ser um grande fracasso, naturalmente sempre atribuído pelos seus adeptos a uma aplicação incorreta. Por outro lado, essa medida, mesmo que funcione até certo ponto em algum momento, enfrenta o mesmo dilema que o imposto sobre o carbono. Se o preço das licenças fosse suficientemente elevado para ter um impacto grave nas emissões de carbono, isso sufocaria o “crescimento”, portanto a dinâmica da acumulação de capital. E é evidente que isso não pode acontecer; não é de admirar, assim, que o preço por tonelada de carbono seja atualmente de apenas 25 euros. E surge finalmente a pergunta: se os governos são capazes de controlar as emissões de carbono das empresas, por que não prescrevem logo valores limite ao invés da tentativa de produzi-los por meio do desvio absurdo de um mercado extremamente opaco?

No interior da lógica capitalista são apenas essas disposições estatais diretas que podem, quando muito, alcançar algum efeito. Em contrapartida, a tentativa de aplicar um mecanismo de preços significa apenas tomar um desvio que, na melhor das hipóteses, produz efeitos mínimos e sempre efeitos secundários negativos. Isto se aplica ao imposto sobre o carbono e às licenças de emissão, bem como à ideia de que o modo de produção poderia ser alterado através de uma mudança no comportamento individual do consumidor provocada pela pressão moral. Tais ideias só são populares na medida em que se enquadram na ideologia hegemônica segundo a qual o mercado é controlado pela soma das decisões de indivíduos e empresas supostamente soberanos. A verdade, porém, é que o mecanismo de propulsão da dinâmica capitalista reside na acumulação de capital e, portanto, na esfera da produção, enquanto as decisões de compra vêm sempre a posteriori e dependem dessa dinâmica.

4.

A ideia de uma “economia de mercado ecológica” não passa fundamentalmente de uma bolha de sabão. Em princípio, o capitalismo pode ser regulado e “contido” de muitas maneiras, mesmo que isso se torne cada vez mais difícil na era da globalização (um “mercado livre” sem regulação existe apenas nas fantasias de terror dos liberais hardcore; nunca existiu e nunca existirá). Mas a lógica básica de compulsão pelo crescimento, baseada no fim em si mesmo da acumulação de capital, não pode ser simplesmente eliminada já que ela constitui o núcleo do sistema da economia de mercado. Portanto, mesmo que, em curto prazo, fosse realmente possível alterar a base energética, isso, melhor das hipóteses, desaceleraria um pouco o ímpeto da destruição ecológica, que seria deslocada para outras áreas. Já quase todos os recursos estão se tornando escassos, desde a água potável até mesmo a areia como matéria-prima para a indústria da construção. E se de fato a maior parte do transporte individual fosse convertido à eletromobilidade, isso levaria a gargalos extremos na “produção sustentável de energia” e também agitaria ainda mais a já feroz batalha por matérias-primas escassas, mas necessárias como o lítio e “terras raras”. Todos estes exemplos acabam por se referir em última instância à insolúvel contradição fundamental de um sistema produtivo e econômico baseado no imperativo da acumulação sem fim de capital que simplesmente não é compatível com as limitações naturais do mundo.

Estamos, em vista disso, em uma situação sem saída? A destruição dos recursos naturais é inevitável? Sim, mas só se aceitarmos a lógica do sistema capitalista como inexorável. Mas se nos atrevermos a questioná-la no seu fundamento e a quebrá-la na prática, abrem-se novas perspectivas. É claro que a alternativa à economia de mercado não pode ser uma economia de Estado planificada, como a conhecemos dos tempos do felizmente desvanecido “socialismo real”. Pois este não era nada mais do que um capitalismo autoritariamente estruturado e organizado de modo estatal. Ali também estava no cerne a produção de riqueza abstrata; apenas os preços, salários e lucros não se formavam no mercado, mas eram estabelecidos pela autoridade do planejamento estatal. E ali também o crescimento econômico era o critério de sucesso, só que as estruturas estatais foram simplesmente rígidas e pesadas demais para competir com o Ocidente, que de fato só foi ultrapassado na extensão da destruição ambiental.

A questão que hoje se coloca não é mais ou menos Estado ou mercado. Ela vai muito além dessa falsa alternativa. A necessária transformação social tem um caráter muito mais fundamental. Ela não afeta apenas a “economia” e sua relação com a “ecologia”, mas visa também um conceito amplo e qualitativamente determinado de riqueza social. Por um lado, isso inclui uma orientação para a riqueza material e, portanto, significa necessariamente a abolição da produção de riqueza abstrata. Por outro lado, a riqueza social não deve ser reduzida à produção material de bens em sentido restrito. A riqueza social significa também, e acima de tudo, riqueza nas relações sociais; significa a possibilidade de decidir livremente a forma de ser socialmente ativo. São cidades, povoados e paisagens nas quais as pessoas se sintam bem; é a preservação do ambiente natural e muito mais.

A transformação da forma social da riqueza inclui também uma transformação fundamental na forma do vínculo social. Trata-se de uma relação completamente diferente das pessoas entre si, com o seu contexto social e com o ambiente natural. Na sociedade capitalista, as pessoas se enfrentam como indivíduos isolados que buscam seus interesses particulares uns contra os outros. A sua relação é de concorrência geral e de alheamento mútuo; ao mesmo tempo, seu contexto social aparece-lhes como um objeto externo e estranho, em relação ao qual se comportam instrumentalmente, da mesma maneira em que eles próprios são apenas um meio a serviço da produção de riqueza abstrata. Expressão disso é a transformação de quase todos os vínculos em relações entre mercadorias, que obriga cada indivíduo a se adaptar constantemente à viabilidade de mercado e à vendabilidade. A indiferença dos seres humanos uns para com os outros, bem como para com a sociedade e para com os fundamentos naturais da vida é, portanto, um princípio estrutural do capitalismo. A alternativa só pode ser uma sociedade baseada nos princípios da livre cooperação e da auto-organização e na qual a individualidade não se baseie na delimitação e autoafirmação, mas no desenvolvimento de cada um como pré-requisito para o desenvolvimento individual dos demais.

5.

Isso pode soar utópico, mas no fundo o solo já está preparado. A sociedade capitalista não produz só enormes perigos e ameaças, mas também potencialidades que apontam na direção acima indicada. Mas estas só podem ser realizadas numa oposição consciente à lógica da economia de mercado. Caso contrário, elas não só serão neutralizadas, como também se transformarão em forças motrizes para a aceleração da dinâmica capitalista e para a destruição dos fundamentos naturais da vida.

Isto é particularmente verdade no que se refere à importância crescente do conhecimento como força produtiva para a sociedade e para a produção da riqueza. Usado sensatamente, ele não só tornaria possível reduzir radicalmente o tempo gasto na produção de bens em geral, como ainda proporcionaria às pessoas do mundo inteiro (e realmente a todas elas) uma riqueza material mais do que suficiente. Além disso, traz o potencial de uma produção compatível com a ecologia e a conservação de recursos. Por exemplo, a descentralização abrangente dos ciclos de produção com uma cooperação global simultânea (livre fluxo de conhecimento, intercâmbio de recursos não disponíveis regionalmente, etc.) não só reduziria as rotas de transporte ao mínimo necessário, como também tornaria as inter-relações de produção e os fluxos de recursos muito mais manejáveis e mais facilmente acessíveis ao controle consciente.

Sob os ditames da lógica da rentabilidade capitalista, porém, acontece exatamente o contrário. Em primeiro lugar, embora o tempo de trabalho nos setores centrais da indústria tenha sido extremamente reduzido, foi apenas para tornar as massas de força de trabalho „supérfluas“ e forçá-los a condições de trabalho precárias, enquanto se intensificou a pressão por desempenho para aqueles que permaneceram. Em segundo lugar, a produção só foi “descentralizada” em um sentido negativo, na medida em que as várias fases de produção foram distribuídas pelo globo segundo critérios de custo, o que é acompanhado não só por uma exploração extrema da força de trabalho na periferia, como é também catastrófico do ponto de vista ecológico, considerando-se apenas a enorme necessidade de transporte. E, em terceiro lugar, muitas tecnologias ecológicas e de aplicação descentralizada ou foram rejeitadas por não serem “rentáveis”, ou foram logo descartadas por empresas interessadas em proteger seus produtos da concorrência.

De maneira semelhante, as capacidades de cooperação e de trabalho autônomo, que se tornaram cada vez mais importantes nas empresas modernas, são constantemente contrariadas pela concorrência onipresente e pela pressão de desempenho, assim como pela permanente compulsão à viabilidade de mercado (que se manifesta especialmente em um aumento acentuado do sofrimento psicológico). Também a idéia, razoável em si mesma, de não possuir todos os tipos de bens, mas de compartilhá-los e usá-los conjuntamente, transformou-se rapidamente em um novo campo de negócios, invertendo a idéia básica da Economia Compartilhada. Assim, por exemplo, a Uber agravou as já precárias condições de trabalho no setor dos transportes e, de resto, contribuiu não para a redução, mas para o aumento do tráfego de carros nas cidades, já que muitas pessoas preferem ser conduzidas por um escravo de serviço a utilizar o metro ou o ônibus. E, finalmente, a Internet há muito se transformou em um enorme campo de negócios para a indústria do entretenimento, da publicidade e de todo tipo de esquemas criminosos, bem como em um gigantesco instrumento de vigilância, enquanto o potencial para uma cooperação global em rede e o livre fluxo de conhecimento nela contido (que foi inicialmente celebrado euforicamente) é agora utilizado apenas em nichos.

6.

A enumeração poderia continuar quase infinitamente. Ela refere-se à enorme flexibilidade e força de atração da lógica capitalista, que tem conseguido repetidamente integrar tendências e impulsos relutantes e torná-los utilizáveis para a continuação de sua própria dinâmica de acumulação. Mas há sempre indivíduos, grupos e iniciativas que se opõem a essa lógica, mesmo que geralmente permaneçam marginais e só possam ganhar importância no quadro de movimentos sociais fortes. Além disso, há outro ponto: embora o sistema capitalista tenha uma tremenda capacidade de repetidamente protelar os limites de sua existência, o preço para isso é uma intensificação do potencial de crise e do seu correspondente ímpeto destrutivo. Isto não diz respeito apenas à contradição indissolúvel entre o impulso de acumulação de capital sem fim e as limitações naturais do mundo, que por meio de medidas simbólicas como o imposto sobre o carbono ou outras ações compensatórias como a moralização do consumo, é deslocada até atingir uma escala que põe em causa as condições da vida humana na Terra.

Também na dinâmica econômica o capitalismo está atingido os seus limites históricos. A abrangente e sistemática automação e digitalização da produção, desde a década de 1980, não só implicou um enorme aumento da pressão no trabalho e no desempenho, mas também teve um impacto enorme no movimento do fim em si mesmo da valorização do capital. Como esta se baseia essencialmente na aplicação de força de trabalho na produção de mercadorias, a massiva expulsão da força de trabalho desencadeou inevitavelmente um processo de crise fundamental que continua até hoje. Também aqui o sistema capitalista demonstrou sua capacidade de deslocar suas próprias contradições; o centro da acumulação de capital foi transferido para os mercados financeiros, onde o capital fictício, ou seja, a antecipação de “valor futuro” sob a forma de títulos, ações e outros instrumentos do mercado financeiro, vem marcando o compasso da economia mundial há quase quarenta anos. Mas mesmo que isso tenha conseguido adiar mais uma vez os limites históricos da acumulação de capital, o preço para tal é a multiplicação do potencial de crise, que se descarrega em crises recorrentes do mercado financeiro. No entanto, como cada um destes impulsos de crise se resolve regularmente por meio da “produção” de ainda mais capital fictício, ou seja, com a acumulação de ainda mais material explosivo, cada explosão subsequente torna-se inevitavelmente ainda mais violenta. O próximo crash nos mercados financeiros já está no horizonte e eclipsará em muito os efeitos econômicos, sociais e políticos da crise de 2008.

7.

Portanto, o fato de a dinâmica capitalista atingir seus limites históricos de várias maneiras não é em si mesmo uma boa notícia. Pois o sistema capitalista não desmorona e desaparece pura e simplesmente, mas, na tentativa de prolongar sua própria existência, desdobra novamente uma tremenda força destrutiva e, caso não seja impedido de fazê-lo, deixará para trás o planeta como uma terra arrasada. Isso só pode ser evitado por um movimento global que se oponha firmemente à lógica capitalista e, ao mesmo tempo, conquiste o terreno para uma sociedade auto-organizada e cooperativa, para além da produção de riqueza abstrata.

O caminho para tal sociedade não passa pelos parlamentos, nem pela revolução clássica da época burguesa, no padrão de 1789 ou de 1917. Pois esta sempre visou ocupar o aparelho da violência do Estado para usá-lo como agente de uma transformação social a partir de cima, e dessa maneira só reproduziu a relação de poder existente em vez de aboli-la. Uma sociedade cooperativa e auto-organizada, no entanto, baseia-se no princípio da associação voluntária de indivíduos sociais e, portanto, não pode ser decretada a partir de cima, mas apenas desenvolvida por um movimento de emancipação global em um confronto cheio de conflitos com a sociedade existente. As margens de ação para isso devem ser conquistadas: através da apropriação dos recursos necessários para o desenvolvimento das próprias estruturas (terra, edifícios, meios de produção e de comunicação, etc.) e através da rejeição ativa da produção de riqueza abstrata e da sua dinâmica tão imperial quanto destrutiva.

Naturalmente, a luta pela hegemonia na interpretação dos processos sociais e políticos também será decisiva. Ambos os adversários estão claramente definidos. Por um lado, está a pós-política liberal, que apelando a “restrições objetivas” declara não haver alternativas ao sistema capitalista da economia de mercado e se dispõe, no máximo, a algumas correções cosméticas. E, por outro lado, está a Nova Direita que se perfila como contra-modelo do liberalismo, embora represente apenas o seu reflexo regressivo e uma agudização autoritária, racista e abertamente violenta da dinâmica de crise. No meio, porém, encontra-se um campo amplo e heterogêneo de discursos, movimentos e iniciativas, a partir do qual poderia se formar um contrapoder social, caso uma nova perspectiva de emancipação social se tornasse visível e praticamente tangível e se desdobrasse em uma força de síntese.

O movimento Fridays for Future tem certamente o potencial de se tornar a faísca inicial para tal contrapoder. Tem consciência da dimensão existencial e mundial da crise, está globalmente em rede e se organiza de modo não hierárquico, quer mudar praticamente a sociedade – e teve a importante experiência de conseguir impacto social e político a partir de uma firme pressão desde baixo. No entanto, a sua fraqueza reside no fato de manter até agora suas críticas e exigências inteiramente no quadro do funcionamento social dominante e de, em termos políticos, exigir sobretudo a aplicação particularmente consistente do imposto sobre o carbono e instrumentos políticos similares, bem como de propagar uma renúncia ao consumo. Mas isso coloca os manifestantes em um campo de discurso no qual já estão derrotados, pois é fácil provar que tais demandas são incompatíveis com a lógica do sistema da economia de mercado. Se o movimento Fridays for Future quer continuar na ofensiva, deve, portanto, passar a questionar radicalmente essa lógica. Se não o fizer, terá de assistir à transformação do seu protesto contra as alterações climáticas em uma licença para matar o clima.

Tradução: Javier Blank